Baú de Estrela

Baú de Estrela

Stella1213De Fausto a infausto

por Stella Galvão

Acordou com a sensação de ter perdido muito tempo. Tinha sido mais um daqueles dias ultracansativos. Tomou uma sopinha leve para não sobrecarregar o estômago, viu um pouco de TV e foi dormir. O quarto era amplo e arejado e era possível deixar a cama sem atropelos. Gostava de saber que não toparia em móveis se fosse sonâmbulo.

Estava no topo de uma carreira meteórica. Trabalhava feito um hércules que busca concluir todos os dias o 12º trabalho. Tinha que achar a frase, a imagem ou a percepção do instante que faria sua fama. A cabeça a mil por hora, engendrava histórias sem pé nem cabeça a todo instante.

A roda-viva das reuniões, as sessões intermináveis de ideias lançadas em todas as direções, os happy hours que eram horas de labuta, sempre em busca de qualquer coisa que se traduzisse em mais vendas para um produto qualquer, de pasta de dente anticáries a carro imune ao impacto de meteoros e absorvente neutralizador de fluxos.

Decidiu que procuraria ajuda. Era preciso deter aquele cansaço absurdo que se apoderava dele no fim da noite. E se justo às 3 horas da matina viesse o insight, o toque de gênio, o clique da lampadinha, o grito de eureka? Não dava mais para sacrificar aquelas horas preciosas.

Quando sobrou um tempinho, correu ao ambulatório médico. Era o plantão do psiquiatra, e soube que poderia estar tendo visões sob efeito do estresse continuado, essa roda-viva de faturar mais um cliente e outro mais. Recebeu um calmante leve, fitoterápico.

Resolveu também reiniciar as caminhadas com o cachorro, pobre sedentário que já dava sinais de rigidez óssea, tal a inatividade. Nessa noite ele comeu o franguinho grelhado com aqueles legumes maravilhosamente temperados na água e sal, passaporte para a imaginação solta, supunha o incauto.

Dia seguinte foi direto para a igreja do bairro, onde o padre era adepto do sincretismo religioso. Água benta, sal grosso, uma cruz de madeira de lei e um cordão de alho, lá foi ele praticar exorcismo no quarto. Feita a limpeza de supostos espectros, a casa respirou Allium Sativum por uma semana.

Mas o hiato persistia, uma coisa sem fim, uma perdição de meu Deus. Um vazio no lugar-comum que se tornara as chances de ascensão. Uma versão menor do Fausto de Goethe, obsidiado pelo sucesso instantâneo, ouviu de vários especialistas que, se insistisse naquela obsessão, poderia encontrar o atalho para a doença, o enlouquecimento. Deu de ombros. Descobriria sozinho a pílula de seus sonhos.

Soube, então, que no alto da cordilheira do Himalaia, no planalto tibetano, certo guru difundira os milagrosos efeitos de um cogumelo que, consumido sob a forma de chá, em muitas doses ao longo do dia, privava a pessoa de sono e a mantinha em vigília nas horas seguintes.

Então era por isso, pensou, que o Lama, encarnação sucessiva do Buda, parecia desafiar o tempo, sempre sorridente e com a palavra certa para apaziguar almas em conflito. Não era ele em corpo presente, mas a emanação daquilo que consumira, pensou o herético já de braços dados com Mefistófeles.,

Procurou em camelôs um cogumelo assemelhado ao encontrado nos confins do Oriente, comprou meia dúzia deles secos e fez chá para um mês inteiro. Consumiu todo o dia, sempre com a garrafinha à mão. Os colegas faziam troça daquele líquido amarelo na mesa de reuniões, mas ele apenas emitia um risinho misterioso enquanto bebericava.

Quando a noite chegou, continuou a rabiscar ideias gastas nos papéis enquanto as horas passavam. Nada do sono vir. Então surgiu a grande campanha. Ele percorria um vale sem fim e descortinava no fim da jornada uma latinha com um líquido desses que descem pela garganta.

O cenário idílico contrastava com sua figura em andrajos, mas o pote no fim do arco-íris era o néctar do consumidor sedento. Alcançou a lata, fechou a campanha e tombou sobre o criado mudo. Acordou nove horas depois, no final da manhã, com o telefone aos berros. Era o patrão comunicando que o cliente havia cochilado de tanto esperar por ele.

A desejada campanha só existira mesmo no sonho daquela noite muito bem-dormida.

* Stella Galvão é jornalista e colaboradora do blog, professora da Escola de Comunicação e Artes da UnP, mestre pela PUC-SP e autora de ‘Calos e Afetos’ e ‘Entreatos’. Endereço no facebook https://www.facebook.com/stella.galva, e-mail: stellag@uol.com.br

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