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por Katarina Peixoto, especial para o Viomundo, reproduzido no Blog
“O que me preocupa é a onda conservadora, e até reacionária, que se espalhou no Brasil e que vem das profundezas da sociedade. Temo que o Brasil tenha poucos anticorpos contra o autoritarismo”.
Armelle Enders é professora titular na université Paris 8 e pesquisadora do Institut d’histoire du Temps Présent (IHTP), associado ao Laboratário da UERJ, com a pesquisa: “Redes de poder e relações culturais” e ao PRONEX: “Caminhos da política no Brasil Imperial”.
Publicou diversos artigos e estudos, dos quais se destacam “A Nova História do Brasil”, publicado no Brasil em 2012, pela editora Gryphus.
Nesta entrevista exclusiva, Enders comenta os acontecimentos mais recentes da crise brasileira, a partir da decisão que condenou Luís Inácio Lula da Silva, em segunda instância, à prisão.
O caráter controverso do julgamento e as implicações políticas e históricas ofereceriam um cenário de “decadência da democracia brasileira”? A brasilianista responde a estas e a outras questões, oferecidas por Viomundo. Segue a entrevista.
Em novembro passado, no blog The Conversation, você disse que havia uma catástrofe à vista, no Brasil. Agora, com essa decisão do TRF4 de segunda instância, a catástrofe chegou? Podemos dizer que o Brasil vive uma catástrofe?
A “catástrofe”, a que me referia, era a possibilidade de um Bolsonaro, quero dizer, de uma figura totalmente avessa à democracia, ganhar o pleito em 2018.
Havia duas hipóteses opostas: que a candidatura de Lula reforçava a polarização e, portanto, inflava o voto Bolsonaro e que, sem Lula, o Bolsonaro ia desidratar; ou, segundo a outra interpretação, ao contrário, a ausência do Lula ia deixar um vácuo, especialmente nas camadas populares, que o Bolsonaro, sendo o voto da raiva e do desespero, poderia preencher.
Nestas alturas, embora não seja a mais provável, a hipótese de Bolsonaro se eleger não pode e não deve ser descartada. Precaver-se é ainda a melhor maneira para evitar a tal catástrofe.
A decisão do TRF4 só confirmou que a direita brasileira não quer a volta do Lula ao poder (ou de qualquer figura de esquerda) e acabar politicamente com ele, a qualquer preço.
O “acordão”, que está se perfilando, exclui o Lula e os petistas.
Por enquanto, nenhuma candidatura do centro-direita consegue decolar, mas nem a campanha começou nem a lista dos candidatos é conhecida.
O que me preocupa é a onda conservadora, e até reacionária, que se espalhou no Brasil e que vem das profundezas da sociedade. Temo que o Brasil tenha poucos anticorpos contra o autoritarismo.
Quais são as linhas de força em jogo no atual cenário político brasileiro? Percebe algum elemento novo, na história do século XX do país, que ajude a entender a peculiaridade, se há alguma, da crise atual?
A questão é que podem barrar a candidatura do Lula, podem prendê-lo, mas não vão tirar a liderança dele.
Nem matá-lo lograria acabar com influência do Lula.
Há de se lembrar como Getúlio Vargas assombrou a república depois de 1954.
Sem Lula, a direita tradicional deve achar que se abre a estrada rumo ao Planalto, mas sempre se deu muito mal com o voto direto na história política brasileira.
Em 1960 e 1989, chegou na presidência por via de outsiders incontroláveis (Jânio, Collor) e deu o que deu, tiveram de sair.
O que salta aos olhos é mais a repetição de uma trama já conhecida do que novidade: um “udenismo”, forte no Congresso e buscando a implementação do parlamentarismo, a desqualificação da esquerda acusada de ser corrupta e autoritária, o debate entre “nacionalismo” vs. “entreguismo”, tudo isso é o velho enredo da política do Brasil desde 1946.
Espanta a volta do anticomunismo no Brasil como se fosse o auge da Guerra Fria!
Na verdade, como historiadora, o clima de hoje me permite entender mais o ambiente pré-golpe de 1964.
A novidade, por enquanto, estaria mais no constitucionalismo formal e aparente.
Parece que está tudo funcionando normalmente, mas como André Singer, com toda razão, o enfatizou, tirar a esquerda do páreo é suprimir a alternância política, e, portanto, o debate entre várias opções, que é a base da democracia.
O pior é que o golpe colocou em xeque a política lulista de conciliação e o reformismo, que foram tão censurados pelas outras esquerdas como compromissos inúteis. É trágico para a democracia.
Para mim, o legado mais importante do lulismo é uma narrativa da história do Brasil.
A política social pode ser desmantelada (e já foi em grande parte), mas a ideia que o Brasil podia superar, sem massacre nem violência, a oposição entre a Casa Grande e a Senzala, afirmar sua soberania e virar uma potência mundial.
Essa narrativa foi rejeitada, mas é o projeto mais coerente e promissor já formulado para o Brasil.
O jornal Le Monde fez um editorial, comentando a condenação de Luís Inácio Lula da Silva, no qual afirma que a democracia brasileira está em decadência. Você concorda com essa afirmação? Acha que se trata de um fenômeno brasileiro ou de uma crise mais ampla?
Outro editorial enviesado do Le Monde, dia 31 de Março de 2016, se não me engano, aconselhava a resignação à presidente Dilma Rousseff e louvava a modernidade das instituições brasileiras e do “impeachment”.
A manchete era “Isso não é golpe de estado”…
Agora descobrem a pólvora do fisiologismo e acham que tudo é farinha do mesmo saco! Pronto, resolvido.
É muita ignorância que se percebe, infelizmente, a respeito do Brasil na mídia francesa influente no publico intelectualizado como Le Monde ou France Culture.
Aqui (na França), muitos intelectuais mal sabem localizar a América latina no mapa ou extrapolam a partir de viagens turístico-acadêmicas. É uma forma de provincianismo.
Mas, voltando ao tema da suposta “decadência” da democracia brasileira, o Brasil não é hoje um caso único de desvios da democracia tal como a conhecemos.
Fala-se de democracias “illibérales” a respeito da Turquia, da Hungria, da Polônia.
Vê-se o crescimento de direitas radicais, ou chamadas de “populistas” (apesar do “populismo” ser cada vez mais uma noção confusa), ou autoproclamadas “alternativas”.
Uma jornalista lançou recentemente um livro que define a vitória do Trump como “a revanche do homem branco”.
Algo parecido está em marcha no Brasil e toma formas diversas: revolta da classe média contra o PT, anti intelectualismo, patrulhamento, censura, caça às bruxas LGBT, poder dos evangélicos…
O que acontece no Brasil é a vertente local da crise provocada pelas transformações devidas à globalização.
Como tudo é exagerado no Brasil, o país me parece um observatório ideal para entender melhor o resto do mundo.
Em 2016, você escreveu sobre o que chamou de “implosão da nova república”, no Brasil. Após a implosão e, chegados a uma catástrofe, o que imagina teremos pela frente? Acredita na possibilidade de um fechamento político maior? (a pergunta é especulativa, não se trata de previsão, obviamente).
Num artigo famoso de 1988, Sérgio Henrique Hudson Abranches já tinha apontado o calcanhar de Aquiles do “presidencialismo de coalizão”: a inexistência de mecanismo de regulação em caso de desentendimento entre o Planalto e a própria situação, a base aliada, daí os impedimentos que ocorreram com o Collor e com a Dilma.
Como uma das características da “Nova República” é a fragmentação partidária, que só foi piorando, a situação se sustenta pelo fisiologismo.
Quando a torneira se fecha, por qualquer motivo (crise e escassez de dinheiro, tentativa de moralização ou desorganização dos circuitos de corrupção…).
Todos os poderes saem desmoralizados dessa crise sem fim.
O governo Temer, essa coisa vergonhosa, poderia entrar num livro de ciência política como “fisiologismo destemperado”, um novo tipo de regime.
Agora, a direita sempre aposta na melhoria da economia, para apaziguar as tensões sociais. Aliás, quando os índices são melhores, fala-se muito menos em corrupção.
É possível que, com a retomada econômica, mesmo que modesta, a República à moda PMDB consiga se perpetuar: satisfazendo aos interesses das oligarquias e da classe média, deixando às camadas populares a sobrevida de sempre, vulneráveis a todas as violências.
Com certeza, a máfia no poder vai querer permanecer aí.
O eleitor possui a chave: pode varrer a classe política (como aconteceu na França em 2017), dar chances a candidatos como Ciro Gomes ou Marina Silva, pode votar com raiva e se jogar nos braços de qualquer aventureiro, mandar para o congresso pastores das mais barrocas igrejas…
Não estou a favor de jogar toda a culpa sobre os políticos, mas de responsabilizar o cidadão.
Quem se esconde por trás do bordão “todos podres” foge do seu dever perante a democracia.
Espero me enganar, mas não acredito muito numa reforma política profunda que moralizaria e modernizaria o sistema político.
Só espero, pelo menos, que as eleições aconteçam normalmente (sem Lula, já são questionáveis).
Se estivesse diante de historiadores brasileiros, ainda em bancos universitários, o que recomendaria para eles buscarem entender o que se está vivendo, no país, hoje?
Recomendaria que se pratique mais história social do que história cultural, que a história saia das grandes cidades para entender melhor as sociedades das cidades médias ou pequenas.
Nós, intelectuais de classe média mediana, moramos numa ilha e temos tendência a recriar um mundo a nossa semelhança.
Temos que entender as resistências ao que achamos progresso e o apelo do que encaramos como retrocesso.
Recomendaria ler trabalhos sobre os movimentos antiliberais, especialmente os oriundos do povo, desde a revolução francesa.
Na sua opinião, qual a força real hoje das organizações políticas e movimentos sociais que estão na resistência ao golpe?
Pelo visto, a resistência contra o golpe é fraca, mobiliza pouco.
A esquerda está em migalhas e, sem Lula, esfacela-se ainda mais.
Há de se convencer de um fato: a esquerda é minoria num Brasil muito conservador.
A esquerda sofreu uma baixa terrível com o golpe e o fracasso da conciliação lulista, mas, por outro lado, não há outra possibilidade para voltar a ser governo que fazer alianças.
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