Baú de Estrela

Ano novo e seus odores

por Stella Galvão

Lucicleide foi espairecer num shopping em dia pós paz mundial. Tudo estava rigorosamente igual aos dias que precederam o novo ano. A fila descomunal no restaurante que oferecia opções de frutos do mar a preço nada módico, os cardápios previsíveis, o distanciamento ignorado. Fora o mesmo, duas coisas lhe chamaram a atenção. O cabelo dourado e batido na
nuca que portavam adolescentes e adultos jovens, uma praga, uma nova disseminação viral. Com atraso, os meninos emulavam um corte e tom de cabelo de um outrora menino de ouro do futebol brasileiro.

A outra coisa que atraiu os olhares curiosos de Luci foi a tarefa de um funcionário de loja que diligentemente raspava apliques de mensagens natalinas e decorações alusivas ao nascimento do menino Cristiano. Bateu um vazio no peito transbordante de alguém que, embora adepta
entusiasmada dos cerimoniais de época, rezava em silêncio para as tais datas festivas passarem correndo. Gostava dos acepipes fartos, da decoração, dos presentinhos. O resto, aquela conversa de conversão instantânea à bondade samaritana, lhe parecia uma hipocrisia quase insuportável. O que não tem remédio remediado está, matutava lembrando dos ancestrais.

Entre um calendário e outro jazia o ataúde dos desejos não concretizados. De novo mais do mesmo. O gênero humano se auto enganava a cada 365 dias porque do contrário enlouqueceria, diziam os estudiosos do comportamento dos bípedes consumidores. Era imperioso acreditar que um ciclo terminava e com ele todo o esgotamento físico e emocional acumulado por doze longos meses, para dar lugar ao novo. E mais ainda depois da instalação e propagação do novo vírus. Que agora de novo nada tinha além dos remodelamentos.

Pois Lucicleide estava possuída por dois desejos para o ano que começava. O primeiro derivava da descoberta, após a limpeza de gavetas, do estoque de perfumes e colônias perigosamente próximos à validade máxima. Assim, acordava e ia dormir embebida em odores. Uma simples caminhada pelas ruas do bairro já deixava atrás de si, mal iniciado o ano, um odor forte e
inapelavelmente associada àquela andarilha. Portanto, o primeiro desejo era andar perfumada, mesmo que a saída de casa fosse para uma trivial entrega de sacola de lixo reciclável.

O segundo desejo era abraçar a musculação. Não era mais uma mocinha e as carnes principiavam a afrouxar. As juntas também, volta e meia travadas. Pesquisou na academia A, B, C. Além de oferecer os ‘puxadores de ferro’, todas prometiam alegrias com aulas de dança, pilates, funcional etc. O problema de Luci era o mesmo de dezenas de pessoas com o mesmo
impulso nesta época. Uma vez acertado o plano semestral ou anual, os dublês de marombeiros se viam sozinhos tendo que lembrar das sequências todas de exercícios. Vãos castelos de areia. E ainda havia que administrar o infeliz encontro dos perfumes com o produto das glândulas sudoríparas. Bem que as metas de ano novo podiam comungar sem transformar a criatura numa gambá ambulante.

*Stella Galvão é Jornalista, cronista e colaboradora do blogdobarbosa

Foto Ilustração do quadro de Rene Magritte (1946)

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