Baú de Estrela

O velho medo

por Stella Galvão

Tinha completado seis décadas de vida, ao cabo das quais pensou: toca agora desfrutar as maravilhas das vagas exclusivas nos estacionamentos e das filas em todos os guichês reservadas a pessoas com mais de 60 primaveras. Essa foi uma das partes boas. Outra fora inaugurada quatro anos, quando conseguiu aposentar-se apesar dos caminhos erráticos por trabalhos muitas vezes breves. Tinha ganho mais ‘dindins’, como se dizia, ‘trabalhando por conta’. Uma produção de bolinhos aqui, um curso particular acolá. Também comemorava haver driblado a legislação que elevara a idade para conseguir o aporte mensal longevo. Quer dizer, até que a criatura beneficiária ‘batesse as botas’.

Estava neste pé quando foi surpreendida pela história que teve lugar numa cidade do interior paulista, na primeira quinzena de março/23. Leu a notícia e a enorme repercussão do caso da jovem quarentona alvo de zombarias, deboche e ‘cancelamento’ por parte de três moçoilas de miolo mole. Como ousava ingressar numa universidade àquela altura da vida, quando deveria estar aposentada, afrontaram as pirralhas. Pilhadas ao produzirem um vídeo tosco que rapidamente vazou para todo lado, as tolas ensaiaram as desculpas de praxe. Enfim, surpresas com a reação popular estrondosamente a favor da moça pós-balzaquiana, bateram em retirada daqueles bancos universitários.

Voltando à jovem sessentona, enojou-a a ideia de que já sejam tidas como velhas pessoas com quase duas décadas menos que a idade oficial para declarar alguém idoso. O curioso é que o trio juvenil está há duas décadas de alcançar o número de anos que execraram. São os ‘novos velhos’. Qualquer ente humano que passou da década dos 20. Uma criatura que começa a flagrar um pelo branco ali, uma flacidez persistente acolá. É a ideia de que somente o corpo potencializado pela fase imediatamente posterior à explosão hormonal da adolescência possa ter pleno direito a estar no mundo sem produzir o medo atávico à decrepitude. É disso que se trata: do medo de envelhecer, como se não fosse uma inexorável decorrência de estar vivo.

Corte para a cena numa academia de ginástica. Uma mulher na faixa dos 60 chega para o treino diário. O instrutor imprime o papelzinho com a sequência de exercícios. Ato contínuo, volta o olhar para uma moçoila que acaba de chegar com a mesma demanda. Imprime a receita diária de movimentos desta e saem a caminho dos aparelhos de produzir suor. A sexagenária protesta: por que não orientar primeiro a ela, que já estava a postos? Ambos lançam um olhar condenatório à senhoria. Neles, se pode ler: como ousa questionar nossas joviais, ainda que toscas, deliberações? Ela desiste, abalada, e vai fazer sua caminhada nas ruas.

Se já caminhava pelas ruas do bairro, porque nossa jovem senhora fez um plano anual no templo dedicado aos sarados e bombados? Exatamente porque há um mantra repetido por médicos que atendem os maiores de idade. Tem que trabalhar a musculatura e as articulações, repetem, muitos deles visivelmente flácidos. Tem que encarar levantamento de peso, agachamento,  mesa flexora e o escambau. Mas há critérios. Primeiro os que podem com cargas pesadas. Os velhos vão ficando pelos cantos, expostos a mais adoecimento mental. Jovens, novos velhos, coroas e congêneres querem afirmar sua existência ruidosa antes que se acerque deles o inevitável. Em “Rei Lear”, obra-prima de Wiliam Shakespeare, o terror ante o processo de degeneração aparece ainda no 1º ato, quando um personagem diz a outro “se tu fosses o meu bobo, tio, eu te daria uma sova por teres ficado velho antes do tempo”. “

#crônica #velhice #novosvelhos

Foto: Tom Hussey

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