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por Stella Galvão
Contava uns 13 anos quando ouviu os versos da canção. Já conhecia a expressão, pronunciada em tom solene e reprovador pelo padre da cidadezinha onde nascera. Felizmente havia escapado daquele sem-fim. Mas, como a bom entendedor meia palavra basta, ela já sabia o significado daquela fusão: ovelha negra. Ouvia a avó contar histórias das famílias que trataram de expurgar seus membros queridos que não se ajustavam a regras. Dois exemplos eloquentes: Meninos que queriam meninos, meninas que pulavam a cerca para namorar ao chamado dos primeiros hormônios. Mas tinha aqueles que ficavam pelos cantos da casa, sem destinar-se a coisa alguma que não fosse picar fumo e fumar, ou a beber sem freios, e havia aquelas que preferiam seguir a banda do momento a atender aos balidos de suas crias.
Existiam em todas as famílias, lugar simbólico de confrontação das regras, mas foi na voz de Rita Lee que elas puderam cantar a plenos pulmões o que eram, seja por auto certificação ou por atributo de terceiros. Foi em 1975 que a canção foi conhecida de norte a sul. Rita a cantava com a intensidade de quem falava de uma trajetória pessoal sujeita a solavancos, de não seguir um roteiro muito estrito. Fosse no mundo real, nas relações interfamiliares, ou no mundo artístico. Ela fugia completamente ao estereótipo de mocinha prendada, preferindo trilhar o caminho da música a começar por uma banda de meninas. Depois, o salto para Os Mutantes, a psicodelia, as drogas, a imersão num fazer musical muito inovador, a arrebatadora carreira solo.
A trajetória da rainha do rock brasileiro foi incensada ainda em vida. Muito se falou da contribuição estética da cantora, cantora e instrumentista. Mas foram as ovelhas negras que se sentiram intimamente representadas com os versos da canção que tornou-se um clássico atemporal. Da vida sossegada, com sombra e água fresca, à constatação do tempo necessário para entender certos processos. Esses processos, a cantora os descreveu com sensibilidade e agudeza: “Não adianta chamar quando alguém está perdido, procurando se encontrar”. Rita transformou em versos, logo em melodia, um doloroso processo de descobrimento da própria trajetória, sentimento comum a tantas ovelhas ditas desgarradas, provisória ou definitivamente dispersas do bando comum. Elas seguem assim, tantas vezes ignoradas ou incompreendidas, até que a circunstância ou uma curva mais acentuada do caminho “ponha o resto no lugar”. Até lá, terão ouvido de algum familiar ou do pai a sentença – que Rita declarou ser uma sentença poética e que entendemos tratar-se do não dito quando se diz de muitas outras formas: “Você é a ovelha negra da família” transformada em mote para tantos subverterem sentenças negativas acerca de si mesmos. Contribuição perene da grande Rita Lee.
*Stella Galvão é jornalista, cronista e colaboradora do blogdobarbosa
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