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Padrão de beleza invade intimidade
por Stella Galvão
Em uma das chamadas de capa da edição impressa de julho/2013, a revista Glamour (editora Globo), destinada ao universo jovem feminino, proclamou: “A ditadura da beleza chegou até a vagina. E agora?” A reportagem informou que o Brasil lidera as estatísticas de cirurgia plástica da labioplastias, as cirurgias plásticas íntimas. O assunto foi apresentado por mim no último Seminário Nacional de Gêneros e Práticas Culturais, realizado na última semana na Universidade Federal da Paraíba, entre risinhos de alguns acadêmicos presentes. Uma mostra de como a intimidade mexe com pulsões primais.
De acordo com dados citados pela revista, a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica situa o país em primeiro no ranking da correção de imperfeições nos lábios vaginais, com 16% de todas as intervenções realizadas. A revista referiu-se ao dilema de ter uma genitália que atenda a requisitos de padronização estética como “questões vaginais existenciais” (!).
O ginecologista Paulo Guimarães, especialista em ‘design vaginal’, afirma realizar 15 cirurgias ‘íntimas’ por mês. Já o cirurgião plástico Marcelo Wulkan, autor de trabalhos sobre a redução de lábios genitais publicados em revistas científicas internacionais, diz fazer cem intervenções destas por ano. Guimarães informa que nos EUA, as mulheres querem uma vagina pequena, cor de rosa. “Já as brasileiras preferem no mesmo tom da pele das mãos, com lábios de 1 cm a 1,5 cm.”
Opiniões citadas na reportagem da Glamour: “É culpa dos filmes pornôs, que ditam o padrão estético vaginal assim como os desfiles de moda ditam o padrão visual corporal”, declarou um produtor de filmes que optou pelo anonimato. A psicanalista Regina Navarro Lins monta uma teoria a respeito: “Mais uma vez, são as mulheres querendo se ajustar ao que elas supõem que os querem. Não é diferente do que faziam as gueixas, que espremiam os pés em sapatos minúsculos para ficarem atraentes aos olhos masculinos”.
Em livro clássico sobre o tema (A Dominação Masculina), o filósofo francês Pierre Bourdieu afirma que o corpo é o lugar onde se inscrevem as disputas pelo poder, é nele que o nosso capital cultural está inscrito, é ele a nossa primeira forma de identificação desde que nascemos – somos homens ou mulheres. Assim, o nosso sexo define se seremos dominados ou dominadores. O corpo é a materialização da dominação, é o “locus” do exercício do poder por excelência.
O também francês Michel Foucault recorda, em Vigiar e Punir, o modo pelo qual o corpo é corrigido pela arquitetura da vigilância, que cria vários dispositivos para a correção e transformação, como uma imensa empresa de normalização que investe nos instrumentos, nos desempenhos corporais para compor o sujeito regulado.
O corpo surge como um símbolo que consagra e torna visíveis as extremas diferenças entre os grupos sociais no Brasil, conforme a antropóloga brasileira Mirian Goldenberg. No Brasil, diz ela, o corpo trabalhado, cuidado, sem marcas indesejáveis (rugas, estrias, celulites, manchas) e sem excessos (gordura, flacidez) é o único que, mesmo sem roupas, está decentemente vestido. É o corpo que deve ser exibido, moldado (inclusive nas chamadas ‘partes pudentas’), manipulado, costurado, enfeitado, produzido, imitado. É o corpo reformado conforme os padrões que entra e sai da moda.
Ainda segundo Bourdieu, no livro citado, os homens tendem a se mostrar insatisfeitos com as partes de seu corpo que consideram “pequenas demais” enquanto as mulheres dirigem suas críticas às regiões de seu corpo que lhes parecem grandes demais. Sintomático da angústia acerca do tamanho do falo.
A dominação masculina, que constitui as mulheres como objetos simbólicos, prossegue o francês, busca colocá-las em permanente estado de insegurança corporal, ou melhor, de dependência simbólica: elas existem, primeiro, pelo e para o olhar dos outros, como objetos receptivos, atraentes, disponíveis. Sob o olhar dos outros, as mulheres se vêem obrigadas a experimentar constantemente a distância entre o corpo real, a que estão presas, e o corpo ideal, que procuram infatigavelmente alcançar.
O tema chegou às artes plásticas. Durante cinco anos, o artista plástico inglês Jamie McCartney tirou moldes de gesso de 400 vaginas de mulheres jovens a idoas. Com os moldes, criou os dez painéis que formam o “Grande Mural da Vagina”. A obra foi exibida em Londres no ano passado e já circulou por vários países. Em entrevista à Folha de S. Paulo, o artista contou que o aumento de cirurgias íntimas foi uma de suas inspirações. “Quando descobri que era a cirurgia cosmética que mais crescia no meu país, decidi agir. Não quero ser parte de uma sociedade que encoraja as mulheres a cortar sua genitália.” Conheça o trabalho no site http://www.greatwallofvagina.co.uk/home.
Um dado concreto é que a obsessão com determinado modelo de corpo tem atrapalhado a vida sexual de muitas mulheres. Em uma recente pesquisa nacional sobre a vida sexual dos brasileiros, com 3.000 homens e mulheres, de todas as classes sociais, coordenada pela psiquiatra Carmita Abdo (2004), do Projeto Sexualidade do Hospital das Clínicas de São Paulo, um dos maiores problemas encontrados foi a falta de desejo: 35% das mulheres pesquisadas não sentem nenhuma vontade de ter relações.
Um dos principais motivos dessa falta de desejo, conforme o diagnóstico de Carmita, é a angústia de não corresponder à imagem da mulher com o corpo perfeito que aparece nas revistas e nos comerciais de TV. Abdo ressalta que numa sociedade altamente erotizada, que privilegia cada vez mais o corpão, a cama pode ser o palco de uma tremenda frustração para quem não apresenta medidas próximas das perfeitas. Na impossibilidade de exibir esse padrão, o desejo é reprimido até sumir de vez – ou transformar-se em neurose.
Na redação da revista Glamour, a foto do “ideal de vagina perfeita”, recebida de um ginecologista entrevistado causou ‘rebuliço’: Nenhum pelinho pra contar história, coloração rosada, grandes lábios gordinhos, pequenos lábios discretos e clitóris escondido, apenas com a pontinha à mostra. Mas “vagina perfeita”, vamos frisar bem, segundo o padrão estético vigente. Sim, você leu corretamente: a ditadura da beleza chegou até as nossas vaginas.
* Stella Galvão é jornalista e colaboradora do blog, professora da Escola de Comunicação e Artes da UnP, mestre pela PUC-SP e autora de ‘Calos e Afetos’ e ‘Entreatos’. Endereço no twitter @stellag19, e-mail: stellag@uol.com.br
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