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por Stella Galvão
Era assim: passavam-se 12 meses e a cada virada da última folhinha de dezembro, aquele estrondo. Findava um ciclo e começava outro. Isso no calendário ocidental cristão. O menino renascia e com ele as esperanças de uma rotina diferente, melhor, claro. Fogos espoucavam, pessoas se abraçavam, sorrisos apareciam do nada. Uma beleza.
Funcionava como um anestésico, um transporte quase psicodélico, um transe semi-místico No curto intervalo entre a claridade e zero hora, noite adentro, de outro dia, acendia-se aquele clarão interno que alimentava a boa e velha expectativa de que as coisas conhecidas pudessem, como num passe, apresentarem-se renovadas, vívidas, pulsantes.
Era um jeito simples e repetido de manter a gente toda longe de surtos duradouros. Porque se não houvesse esse hiato esperançoso, quem haveria de suportar a marcha maçante dos dias? Ao contrário do que se propagava, era a iminência do ano novo, muito mais que o carnaval, que mantinha a disposição férrea da multidão para seguir adiante.
E havia o ritual das listas cheias de boas intenções. Parar de fumar, fazer atividade física, voltar a estudar, mudar de emprego, aumentar os ganhos, enxugar as contas, encontrar um novo amor ou reciclar o velho, investir nos amigos, passar mais tempo com pessoas queridas etc etc. O pacote de Ano-Novo incluía também o balanço de vida, reforço nos desejos mais recônditos e a velha esperança à espreita ao pé da cama. Que a vida fosse mais leve, que os amores se intensificassem, que o bilhete premiado fosse parar na sua mão blá blá.
E outro costume, lembrado em crônica de Luís Fernando Veríssimo (publicada nos estertores de 2010), é fazer previsões na véspera do Ano Novo. Pode chover. “Alguém, em algum lugar do Brasil, está dizendo: ‘Boas entradas nada, eu quero saber onde fica a saída…’ E a previsão mais fácil de todas: Amanhã eu vou estar de ressaca!”
Algumas superstições típicas da data e listadas por Veríssimo: ‘O primeiro animal que você encontrar na rua no Ano Novo pode significar uma coisa. Cachorro é sorte. Gato é dinheiro. Rato é saúde. Um bando de hienas é azar, corra. Um cavalo roxo dançando o xaxado na calçada significa que você está bêbado. Vá dormir.’
Pois este ano, depois de um exame físico e uma anamnese não menos criteriosa, Natalina Alves decidiu investir na simbologia toda com vigor redobrado. Dezembro assistiu os últimos grânulos descendo pela ampulheta enquanto ela se deixava contagiar pelos ventos estimulantes da ideia de mudança.
O ano novo com toda aquela história de novos planos e metas de vida era a ocasião perfeita para mais uma tentativa. Das outras vezes tinha experimentado chegar à metade do ano para dar o pontapé inicial no projeto. Vai ver foi a ausência de uma data estratégia que fez o projeto dar com os burros n’água.
Desta vez não havia escapatória. É que o médico com que se consultava há anos tinha dado o ultimato. Ou se movimentava urgentemente ou seria candidata a entrevada, com dores esparsas e frequentes por músculos, articulações e ossatura enferrujada.
Para vencer a resistência a exercícios, academias e coisas do gênero, ele a mandou andar, subir escadas, carregar pacotes bem distribuídos nos dois braços, fazer caminhadas regulares com o cachorro, entre outras sandices destinadas a suar. Ora, pensava Natalina, isso tudo ela já fazia desde sempre. Mas é claro que de modo esparso, entre uma e outra sessão de sofá.
Decidida como estava, resolveu inaugurar a nova fase com a aquisição de um tênis zero quilômetro. Enlouqueceu vendedores de lojas enquanto lia manuais, descrição de carga, impacto e amortecimento da maravilha moderna anunciada pelo marketing global como capaz de transformar qualquer mortal em um Hércules, herói grego encarregado dos doze trabalhos.
O tênis eleito amoldou-se de tal forma aos pés de Natalina que ela, obcecada, dormia e acordava a postos. Vencia a vizinhança ora no trote, ora no passo rápido e alongado, ou correndo como quem se lança a toda velocidade para tomar o último trem para Jaçanã.
Tornou-se inclusive uma especialista no assunto, ministrando palestras sobre o impacto do tipo de pisada, as características do pé, o funcionamento da mecânica do corpo para correr, andar, saltitar. Sabia de cor o trecho do poema ‘Receita de Ano Novo’, do Carlos Drummond de Andrade: “Para ganhar um ano novo que mereça este nome, você tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.”
Enxugada a lágrima que se seguia a este belo enxerto de texto, Natalina tratou de fixar à geladeira, em letras garrafais, os versos do juramento grego que precedia os primeiros jogos olímpicos: “Que os deuses me castiguem, enviando-me os tormentos com que castigam o que peca contra ele jurando em falso.” A artrose, julgava ela, estava vencida.
* Stella Galvão é jornalista e colaboradora do blog, professora da Escola de Comunicação e Artes da UnP, mestre pela PUC-SP e autora de ‘Calos e Afetos’ e ‘Entreatos’. Endereço no twitter @stellag19, e-mail: stellag@uol.com.br
Adorei ou teixo