Arquivos
Links Rápidos
Categorias
Sobre abusos e habitus
Foi o tema de janeiro na cidade pós-Natal. O destempero público do personagem que chamaremos de senhorzinho e o garçom de uma padaria concebida para abrigar os mais abonados fregueses da cidade. Um lugar onde não raro o cliente que entra pela primeira vez é esquadrinhado, como se passasse por um raio x de aeroporto. Aprovação ou seu contrário determinado por um conjunto de sinais.
O primeiro deles, a empáfia. Parecer abusado, arrogante, grosseiro e/ou mal educado tornou-se lamentavelmente uma das marcas de distinção entre a classe média tosca, aquela que enxerga-se como produto inalienável de uma cidade marcada pelas diferenças sociais – que o digam os moradores de certas zonas.
No episódio em questão, o senhorzinho comia alguns acepipes quando se deu por insatisfeito com o garçom e cobriu-lhe de gritos no passeio público da central de pães. Aquele, obediente ao código de trabalho de locais que elegem o cliente como deus-sol, sem restringir abusos, nada retrucou.
Havia, porém, um terceiro elemento não esperado pelos dois protagonistas da cena dantesca. Um cidadão que também satisfazia as necessidades de alimento no local, reagiu ao abuso cometido e encarou o senhorzinho. Este, em novo abuso clássico, acionou a polícia alegando sua condição de membro escalonado do Judiciário.
O restante da clientela assistiu a tudo como a um capítulo de novela. Qual não foi a surpresa geral quando o chefe dos policiais, ouvindo a audiência negou-se a emitir um ‘teje preso’ para o cidadão, ao que foram xingados de emissores de resíduos fétidos pelo magistrado.
A histórica contenda rendeu desdobramentos durante a semana, alimentada não por carboidratos mas pelo combustível do inusitado. O que seria isto? A ofensa? O encolhimento do ofendido? Ora, mas claro, a reação de um natalense em público, e em defesa de outrem, algo raro de acontecer nos tempos atuais em qualquer localidade. Na era do individualismo, convém passar ao largo dos conflitos públicos.
Para todos os efeitos, o que coube ao empresário enrustido do papel de cidadão justamente indignado com a prática da humilhação a trabalhadores, foi a autoridade do sujeito que tem o poder da fala e, em decorrência disto, é investido de autoridade. Tal discurso é legitimado pela noção intrínseca de justiça que caracteriza a ação pautada pela ética que deve nortear a vida em sociedade. Como sabido, afinal, não existem discursos neutros.
Tomando por base um conceito elaborado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu há mais de duas décadas, habitus, trata-se de um processo subjetivo que cria uma mecânica de conforto e conveniência para a recepção das mensagens. Esse habitus é tão natural que as pessoas praticamente não se dão conta de sua existência.
Assim, uma pessoa que criou um habitus voltado à representação de funcionários de alguns segmentos (comércio, limpeza etc) como algo próximo a serviçais, tenderá a superdimensionar qualquer ocorrência que contrarie ou potencialize a noção de servidão.
O habitus não impossibilita que as pessoas pensem, mas cria uma espécie de inércia receptiva cômoda. O questionamento por sua vez, não coloca em evidência apenas a dúvida de quem questiona. No caso relatado, a questão é colocada por um terceiro, como vimos. Ele põe em cheque o próprio conhecimento de causa de quem está sendo questionado.
Não é sem razão que o questionamento é causa e efeito de códigos sociais em ruína. O “por que?” possui uma força avassaladora nos macaquinhos que não aceitam mais apanhar de seus companheiros por desejarem alcançar as bananas. E possui o mesmo efeito para a vida em sociedade. Ao senhorzinho, as certezas pútridas. Ao garçom, a revisão do habitus da passividade e, ao cidadão, os louros da justa reação.
* Stella Galvão é jornalista e colaboradora do blog, professora da Escola de Comunicação e Artes da UnP, mestre pela PUC-SP e autora de ‘Calos e Afetos’ e ‘Entreatos’. Endereço no twitter @stellag19, e-mail: stellag@uol.com.br
Deixe uma resposta