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E Sebastião bebeu na vã filosofia
por Stella Galvão
Menino mirrado, ele chegou a ser desenganado por um desses médicos abnegados que ganham as grotas do interior para fazer cumprir o juramento de Hipócrates. Não, naquela época inexistiam cooperativas ou planos ou mesmo seguros saúde. O seguro morreu de velho, como repetia o povo em sacrossanta ladainha. O doutor andava de alpercatas pelo meio do mato, montado num burrico, e tinha que achar espaço na casa simples para tanta jaca, ovos, manga, galinha tratada e outros tantos presentinhos recebidos da clientela agradecida.
Os pais do sacripanta, de tão gratos pela recuperação da leishmaniose do filho, deram àquele dedicado mestre cura uma garrafa das grandes de molho de pimenta curtido em casa, uma jóia rara. As lágrimas do médico eram sinceras e copiosas, não fosse pelo fato dele ter levado, inadvertidamente, a garrafa aos olhos.
Mas é o caso é que o curumim, batizado de Sebastião como paga ao santo trespassado por flechas – alvo de promessa fervorosa –, se desenvolveu, embora tivesse preservado uma tristeza em seu olhar melancólico e furtivo que nem o mais perscrutador e invasivo dos seres teria sido capaz de identificar a causa originária. Seria obra de um ovo remanescente da leshmania? Por conta desse ensimesmamento, o moço era visto em lugares ermos na companhia dele mesmo, sempre a contemplar um ponto qualquer ou a correr o olhar perdido pelo matagal. Morasse a família em um lugar maior, cheio de especialistas, e teríamos, talvez, um diagnóstico de autismo, o distúrbio marcado pelo alheamento e isolamento social.
Já na universidade, Sebastião cresceu e ganhou visibilidade. O que antes era problema transformara-se numa tremenda vantagem. Causava espécie aquele ar de tédio permanente, especialmente entre as mulheres. Ele cedo percebeu essa inclinação feminina por tipos com certa cafajestice no olhar e no portar-se também. O sofrimento que lhe era atávico passou a ser calculado. Embrenhou-se na seção de filosofia da biblioteca e lá sorveu doses cavalares de Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche. Era agora um Tião embebido em niilismo, aquela visão que mora na filosofia de envolver a realidade em uma pesada cortina de pessimismo e ceticismo.
Agora boçal, meio erudito e quase que inteiramente irracional, Tião bradava, entre uma dose e outra de cachaça com limão no boteco escuro: “Todo novo incidente adverso tem de ser assimilado pelo intelecto, tem de receber um lugar no sistema de verdades que se referem à nossa vontade, aos nossos interesses, e isso ainda que fosse necessário reprimir para tal fim coisas mais satisfatórias”. Puro Schopenhauer.
As moças babavam e ele se enroscava em exemplares humanos diversos noite após noite. Mas, como não se vive apenas de beber, citar pensadores, exibir-se e fornicar, era preciso ganhar independência financeira, parar de pedir um cheque em branco à moça em êxtase mais intenso que o da Santa Tereza de Bernini, que teimosamente se aferrava às chagas ainda visíveis da leishmaníase cutânea.
Então, Tião descobriu as benesses do poder miúdo, esse que faz a alegria das massas em noite de forró arrochado. Campanhas cujo índice de sucesso era medido pelo potencial de enganação, candidatos embrulhados em papel celofane embora nem um jornal velho lhes servisse de indumentária, arranjos políticos e armações combinadas não mais em mesa de bar fuleiro, mas nas mesas fartas dos restaurantes da moda. Nem pimenta caseira consumia mais.
Era ano eleitoral, ano futebolístico e ano em que as trevas do pensamento ameaçavam o livre arbítrio dos eleitores – as massas, chafurdando na própria indiferença e alheamento, saiam de casa para estripar, estuprar, linchar. Que maravilha, exultava o recém-convertido às intempéries de uma vida pautada pela extorsão do livre pensar.
Bebia agora fartas doses da filosofia do dinamarquês Soren Kierkegaard, que tratava de subverter aos interesses igualmente miúdos do próprio edifício mental. “A verdade sempre é apenas encontrada junto à minoria”, esbravejava. O frêmito experimentado antes a tese do indivíduo único levava Tião a flertar com a loucura. Repetia para atônicos cabos eleitorais: “os gênios são como as trovoadas, enfrentam o vento, aterrorizam as pessoas, limpam o ar”. Que coisa!
* Stella Galvão é jornalista e colaboradora do blog, professora da Escola de Comunicação e Artes da UnP, mestre pela PUC-SP e autora de ‘Calos e Afetos’ e ‘Entreatos’. Endereço no twitter @stellag19, e-mail: stellag@uol.com.br
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