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Artigo

A eleição para a prefeitura deve pautar os mais pobres

por Ion Andrade

Vivemos numa cidade violenta, cuja violência aflige sobretudo as periferias e os mais pobres. Vivemos também numa cidade onde as oportunidades para a juventude não estão acessíveis aos que mais necessitariam delas dada a vida material precária em que vivem e vivemos numa cidade que conta hoje cem mil idosos, mas na qual não há qualquer iniciativa pública para o acolhimento deles em longa permanência, o que mais uma vez penaliza os mais pobres dentre os idosos em situação de risco social. 

Se esses exemplos responsabilizam em primeiro lugar a prefeitura, o governo do estado, por sua vez, em lugar de concentrar recursos para investir num grande projeto de bem estar social nas periferias de Natal e de outras cidades do estado, prefere contratar mais e mais soldados de polícia, o que não altera em nada a gênese da violência, pois age no seu último elo que é a repressão. 

Cada mês de remuneração dessa tropa a ser contratada representará o equivalente aproximado a um Ginásio Arena do Morro não construído em alguma periferia da cidade, ou a oito escolas de música como as de Mãe Luiza o que materializa outro pecado grave contra um povo que não pode mais esperar.

Outra ilustração desse mesmo problema, agora sob o enfoque municipal é o investimento que a prefeitura de Natal pretende fazer na trincheira do cruzamento da Salgado Filho com a Hermes da Fonseca e que vai drenar cerca de 25 milhões de reais do erário público.

Mas, o que são 25 milhões de reais? Recursos suficientes para construir quatro ginásios poliesportivos como o Arena do Morro ou 30 escolas de música como a de Mãe Luiza, ou outros equipamentos por escolha de cada comunidade, como as bibliotecas públicas, as pistas de skate, as casas dia de idosos, os anfiteatros, os mercados públicos, as piscinas públicas, etc, etc, etc, coisas, na verdade banais, que fazem parte do que deve ser oferecido numa cidade civilizada aos seus munícipes.

No esforço de irradiar a experiência de Mãe Luiza para a cidade, o Centro Sócio Pastoral Nossa Senhora da Conceição (CSPNSC) está promovendo um concurso arquitetônico juntamente com a comunidade de Felipe Camarão focado num Complexo Esportivo e numa pista de bicicross eleitos como a obra social prioritária por uma comissão de moradores mobilizados pelas entidades do bairro. 

Mas o CSPNSC não é um Poder Público, não tem como bancar a obra e tomou essa iniciativa como parte da celebração dos seus 40 anos para tentar mostrar que esse caminho é possível em toda a Natal, sobretudo nas periferias e bairros populares e não somente em Mãe Luiza. 

Isso mostra que o que deveria ser uma rotina habitual da governança pública (construir oportunidades onde elas são mais necessárias) é uma ação contra gradiente e originada, não em algum governo, mas da sociedade civil da cidade. O Complexo esportivo de Felipe Camarão parece ser uma espécie de Dom Quixote contra os moinhos. 

Por esse prisma vemos que se há um consenso político hoje no RN é o do não atendimento do “andar de baixo” da sociedade no que toca à agenda da Inclusão, do Direito à Cidade, do Bem Estar Social e da replicação da cidadania entre os mais pobres.

Saliento que não creio que esse consenso tão nefasto ocorra de propósito, trata-se de uma cultura política precária, mas compartilhada por muitos, de um gargalo geral no entendimento de coisas essenciais para a felicidade da vida das pessoas que deveriam estar presentes nas políticas públicas e não estão, lacunas que fazem continuamente de nós uma sociedade irremediavelmente atrasada e subdesenvolvida.

Na área de idosos dá-se o mesmo e ninguém sabe dizer quantas vagas de Longa Permanência Natal precisa para remediar a demanda reprimida de idosos em situação de risco social, nem de quantas vagas a cidade precisará na medida que avance o envelhecimento populacional. Nem o Poder Público sabe, nem as universidades sabem, nem ninguém pesquisa, nem o controle social exige… Um século XVIII vivo e latejante.

Esse verdadeiro diálogo de surdos entre necessidades não atendidas e iniciativas nunca tomadas é kafkiano, tem que mudar e quero crer que talvez já esteja mudando. 

Por exemplo, o governo do estado sinalizou, através da Secretaria Estadual de Educação, interesse em ser parceiro da comunidade de Felipe Camarão no sentido de viabilizar o Complexo Poliesportivo que, para fins do exercício do concurso, foi orçado em três milhões de reais, o que é realmente muito barato considerando a grande magnitude dos investimentos em andamento já enunciados aqui. O terreno previsto pertence ao estado e se prevê ali construir uma escola de segundo grau, que pode conviver, gerir e utilizar o Complexo Esportivo a ser construído.

Da mesma forma a prefeitura de Natal sinalizou interesse em levar adiante a Via Verde na Avenida Sabino Gentili em Mãe Luiza, ideia urbanística do escritório Herzog & de Meuron, que a converteria numa rua predominantemente pedestre e arborizada para o lazer das famílias da comunidade que teriam finalmente onde passear com os seus filhos e netos num ambiente feito para isso…

O debate eleitoral serve para motivar o amadurecimento do exercício do Poder em Natal e no RN para que esse Poder Público possa começar a cumprir com obrigações que sempre foram parar debaixo do tapete ocasionando um subdesenvolvimento crônico em nossas periferias e um sofrimento para o nosso povo por uma exclusão social que sim poderia ser remediada, mas que continua a castrar talentos, frustrar jovens, arruinar vidas, trazer insegurança às famílias e produzir violência e mal-estar social.

Vamos esperar que não haja um acordão político “por cima” capaz de fazer das eleições municipais um simulacro de democracia para asfaltar ambições de Poder na disputa de 2026 ainda distante. 

Esse acordão (espero que não venha) entre forças que deveriam, de fato, debater diferentes propostas para a cidade seria efetivamente muito ruim para a democracia, que ainda temos que consolidar no Brasil e para Natal.

Para além das eleições e de olho no lento processo civilizatório a que aspiramos, espero que possamos inaugurar, já nas próximas eleições, um novo consenso público no qual os mais pobres possam efetivamente ser priorizados e que as forças políticas disputem a oferta de oportunidades e de dignidade para quem precisa mais.

*Ion Andrade é médico e professor universitário

Foto: Divulgação

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