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por Stella Galvão
Esta semana um dos temas que mais palpitou nos meios de comunicação (incluídos sites e blogs de todas as cores e preferências político-partidárias, além das redes sociais digitais) tratou da ida para o xilindró de um bonde de petistas cujas sentenças foram finalmente confirmadas pelo STF, no julgamento do caso Mensalão. Gritos eufóricos de ‘justiça foi feita’ se fizeram ouvir por toda parte, como também o protesto daqueles que vêem no episódio a mancha da perseguição ideológica ao projeto petista de governar o país, inaugurado há 11 anos.
Paixões e opiniões à parte, o que salta à vista neste processo é algo saudável propiciado pela tão criticada via democrática: a expressão das dissonâncias, dissidências, a liberdade de pensar diferente do senso comum e poder expressar isso, ainda que debaixo dos impropérios e do desconforto dos que remam em outra direção.
A coluna desta semana, portanto, vem saudar um livro (“A ideia de Justiça”) e uma concepção de vida em sociedade proposta pelo economista e professor da Universidade de Harvard, o indiano Amartya Sen, prêmio Nobel de economia (1998) por sua contribuição à teoria da escolha social e ao estado de bem-estar social. É também um dos criadores do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), vem sendo usado desde 1993 pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento que apontar os países mais propositivos quanto às demandas sociais. O livro cujo título identifica a coluna desta semana saiu em 2011 pela Companhia das Letras, apenas dois anos após seu lançamento. Pudera, as ideias de Sen precisam circular amplamente, a bem do processo democrático.
Diz o autor que a compreensão da democracia ampliou-se enormemente no mundo contemporâneo, de modo a ser vista não apenas com relação às demandas pelo exercício universal do voto secreto, mas, de maneira muito mais aberta, no que diz respeito ao exercício da razão pública, exatamente o oposto da desrazão dos que creem sempre ter razão, em detrimento dos que pensam de modo diverso. ‘A ideia que sustenta a democracia deliberativa é a própria ideia de deliberação, quando os cidadãos deliberam, trocam opiniões e discutem os respectivos argumentos sobre questões político-públicas’.
Os pontos centrais de uma compreensão mais ampla da democracia, portanto, são a participação, o diálogo e a interação pública. O papel crucial da argumentação na prática da democracia coloca todo o tema em estreita relação com o tópico central do livro, que é a justiça. A própria eficácia das votações – para muitos o cerne da democracia – depende dos acessórios indispensáveis que as acompanha: a liberdade de expressão, o acesso à informação e a liberdade de discordância.
E, por mais que se discuta o caráter manipulatório das grandes corporações midiáticas, elas são partes da estrutura de poder que cumprem o papel de prestigiar e informar, ainda que unilateralmente, o posicionamento de um grupo coeso e ideologizado. Ao menos no que concerne aos seus caros interesses. Uma das iniciativas mais importantes para a promoção da argumentação pública no mundo, diz Amartya Sen, é a de ‘apoiar uma imprensa livre e independente’.
É fato, segundo o autor, que há necessidade de uma mídia livre e vigorosa. Isso, claramente, não significa prestigiar unicamente a mídia hegemônica – para usar um termo do dicionário marxista –, aquela que impera, inquestionável e resoluta, difundindo preceitos do amplo espectro de interesses que movem a política, as questões sociais, o arbítrio humano. Com a facilidade crescente do acesso a informações geradas por grupos de interesses tão vastos quanto a rede online que os abriga, há uma miríade de posições disponíveis. Mas há a necessidade de se deixar a zona de conforto para adentrar o risco da dúvida, da contradição, do debate aberto. E igualmente da informação incompleta, falsa, plantada. Claro, separar o joio do trigo requer disposição.
Lê-se, por exemplo, a explosão rancorosa antipetismo da revista Veja e uma enorme quantidade de detratores dos tais petralhas. E lê-se a revista Carta Capital, que saúda o governo petista sem pejo. Havendo interesse em prospectar, acham-se às dezenas os que aderem ao mesmo projeto político com a garra, em alguns casos, dos fanáticos.
Voltando ao autor indiano, lemos que a primeira contribuição da existência de tais meios é a liberdade de expressão em geral e da liberdade de imprensa em particular. Em segundo lugar, o importante papel informativo, difundindo o conhecimento e permitindo a análise crítica. Em terceiro lugar, a liberdade dos meios de comunicação tem uma importante função protetora, dando voz aos negligenciados e desfavorecidos. Em quarto lugar, a formação de valores exige igualmente abertura na comunicação e na argumentação.
O apelo ao uso público da razão é um pressuposto para se pensar a justiça, dado que entender suas exigências não é mais um exercício solitário, mas sim uma reflexão racional pública. Segundo Sen, o debate público que se paute pela argumentação racional, objetiva e imparcial é uma poderosa ferramenta para a promoção da justiça em um mundo marcado por diatribes e excessos de parte a parte. “A ideia de justiça” oferece, enfim, uma nova perspectiva a partir da qual se pode analisar o momento atual das relações no plano local, nacional, internacional, marcado pela contestação da hegemonia global e pelo (re)nascimento de múltiplos polos de poder.
Conforme Amartya Sen, a justiça é uma ideia de imensa importância que moveu as pessoas no passado e continuará a movê-las no futuro. A argumentação racional e o exame crítico podem oferecer um grande auxílio para ampliar o alcance e refinar o conteúdo desse conceito fundamental.
* Stella Galvão é jornalista e colaboradora do blog, professora da Escola de Comunicação e Artes da UnP, mestre pela PUC-SP e autora de ‘Calos e Afetos’ e ‘Entreatos’. Endereço no twitter @stellag19, e-mail: stellag@uol.com.br
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