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por Stella Galvão
Nova edição do reality show batizado de BBB trouxe a explicitude para o universo da TV aberta como raras vezes se viu antes, mesmo em tempos marcadas pela exposição paroxística. Moças e rapazes desinibidos, nesta versão, livram-se do fardo das roupas como um devedor dos credores. Sem pejo, sem disfarces, muito pelo contrário. Vale tudo, mas tudo mesmo, pela permanência dos anunciantes.
O tão aguardado beijo gay em novela ocorreu finalmente entre Félix, o vilão convertido às teias enredantes do amor, supremo amor, e o bom moço enternecido Nico. Quando o encontro de lábios ocorreu, ouviu-se um foguetório por toda parte. De tão suave e romântico, o beijo histórico virou piada se comparado ao beijo diuturnamente trocado por duas moças no tal reality.
O psicólogo, atento aos sinais dos tempos, a tudo assistia com um risinho sardônico. O exibicionismo de vulvas, glúteos e dotes íntimos contrastava fortemente com uma história que ele havia acompanhado no ano anterior. A paciente, pudica e fervorosa em seus votos cristãos, havia dividido no divã suas angústias, desejos e ardores singelamente concupiscentes.
Era uma jovem freira, bela e vistosa. Ela havia feito seus votos de devoção desde novinha, aparentemente sem pressão familiar. Assim, ela envergou o hábito cinza com a gravidade de uma Joana D’Arc a caminho da fogueira, crente e convicta. E falando em fogo, ocorria desta alma pura ser consumida por pensamentos não exatamente castos.
Donzela que havia sobrevivido às investidas de um sem número de moçoilos encantados com suas formas opulentas, ela reagia àquelas vontades com banhos demorados. Também consumia potes de doce de leite, o que a deixava mortificada. Se por um lado aplacava uma ânsia devoradora, de outro atiçava o pecado da gula.
Assim aflita, decidiu consultar um psicólogo para desabafar. Contou com miudeza de detalhes como era acossada por labaredas em sua intimidade, tremendo de vontade de amar. Mas o que ela queria, e persistia nisso, era amar unicamente a Deus. Resistia até quase ao ponto da autoflagelação. Não contente, banhava-se em água gelada na tentativa de neutralizar o fogo interno.
Algumas sessões se passaram até que, na véspera de embarcar para uma temporada de preparação espiritual em solo Vaticano, ela foi surpreendida pela súbita abertura da porta do consultório onde se consultava. O improvável se manifestou, como se o próprio anjo caído tivesse adquirido feições humanas.
Foi quando surgiu um homem quase nu, parcialmente coberto, todo respingado de tinta, do cabelo à unha do dedo mindinho. Numa das mãos, uma penca de livros, noutra, o rolo de tinta ainda fresca e pingando, espalhando o rosa no trajeto. Era o psiquiatra que ocupava a sala vizinha, naquele dia encarnando um dublê de pintor.
A freira pulou da poltrona e pôs-se a gritar, hipnotizada pela visão do masculino ali, a poucos metros dela, e quase sem roupa. A cor da cueca causava mesmo uma ilusão de ótica. Estaria ele nu? A psicóloga teve uma crise de riso. E o psiquiatra ali, pasmo, sem entender nada. Depois da eternidade de um minuto, ele finalmente conseguiu se explicar. Dito isso, e após as desculpas de praxe, correu de volta para sua sala.
Teria sido produto de sua imaginação fértil, justamente curiosa pela visão do corpo de homem? A entrada em cena do psiquiatra de cueca foi um achado terapêutico. O tema da sexualidade reprimida da freira voltou ao lugar central do processo. Depois de contemplar um homem em roupas de baixo, ela repensaria a necessidade de um encontro com outro ser, carnal? Ou se aferraria aos seus votos?
Com questões assim no ar, ela embarcou para o Velho Continente, onde permaneceu por vários meses. Quando retornou ao país e à psicoterapia, retomou a obsessão com uma disposição surpreendente. Presenteou o psicólogo com o calendário de jovens freiras a adornar os meses do ano com expressões e hábitos que fariam corar um eremita Falava agora, às claras, do que lhe provocava a visão de homens que a atraíam.
Chegou mesmo a cogitar assumir sua sexualidade, dissimulando essa opção para as superioras e colegas de claustro. Só a deteve, ao menos às claras, a crença no Deus onipresente, que tudo vê, do qual nada escapa. Mas, em longas permanências na capela Sistina, diante de uma série de anjos despidos graciosamente por Michelangelo, ocorreu a essa vocação ainda incipiente para as coisas da alma que o nu é mesmo belo. E o psiquiatra com sua cuequinha nude repentinamente se configurou para ela algo tão palpável e sublime.
* Stella Galvão é jornalista e colaboradora do blog, professora da Escola de Comunicação e Artes da UnP, mestre pela PUC-SP e autora de ‘Calos e Afetos’ e ‘Entreatos’. Endereço no twitter @stellag19, e-mail: stellag@uol.com.br
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