Baú de Estrela

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Stella1213Pompeu e o Jornalismo que deixa saudade

A última lauda, como diria usando a linguagem dos velhos tempos do jornal impresso no paleolítico recente – que se confunde com a avalanche das novas tecnologias nas redações –, foi escrita pouco antes do encerramento do plantão. Na verdade foi um post veiculado no sábado (8) no blog do Renatão, que seu autor mantinha desde 2009 com uma atividade prolífica, como caberia a um cronista de tempos céleres.

Soube-se, neste domingo (9), que o jornalista paulista Renato Pompeu não mais habitava o plano físico. Aos 72 anos, Renatão, como era conhecido entre amigos e colegas de jornada no universo jornalístico, sucumbiu a uma infecção generalizada. O jornalismo brasileiro perdeu um dos seus grandes nomes, um profissional remanescente de uma geração que primou pela escrita primorosa, irretocável, rica em informação e vernáculo.

A partida de Pompeu, mais que entristecer profundamente todos que tiveram o privilégio de com ele conviver, ele e sua verve e humor inconfundíveis, sinaliza o obituário de uma forma de fazer jornalismo que vem desaparecendo com a mesma velocidade com que pulula a instantaneidade da notícia ligeira, sem filtro nem critério.

Em post veiculado pelo blog no último dia 31 de janeiro, deu uma aula sobre como introduzir uma resenha de um livro, capturando o leitor para o tema abordado. Um belíssimo nariz de cera, jargão jornalístico para uma introdução que demora a ir ao ponto, criticada contemporaneamente sob o pretexto de falta de objetividade. Renato, ex-aluno de Ciências Sociais da USP, autor de 22 livros e um dedicado leitor dos clássicos, não sucumbia ao receituário do lead jornalístico engessador (que, quem, onde, como, quando, por que). Deleitava seu leitor, como se lê neste lead envolvente, rico em contextualização.

“Em todas as espécies animais, os pais morrem antes dos filhos e isso faz parte da ordem natural das coisas. Mas, na espécie humana, quanto mais civilizada for a região que ela habita, maiores são as chances de os filhos morrerem antes dos pais. Foi na civilizadíssima Europa que, em duas guerras em menos de trinta anos, no século passado, a maior proporção de pais da história enterrou milhões de filhos. E é no berço da civilização humana, o Oriente Médio, que ao longo de milênios a ordem natural das coisas tem sido mais invertida, e que pais como o escritor israelense David Grossman, 58 anos, têm de enterrar seus filhos, como Uri Grossman, que tinha 20 anos quando morreu em 2006, durante a invasão de então do Líbano por Israel, vítima de um míssil antitanque lançado contra o blindado que comandava como sargento das chamadas Forças de Defesa Israelenses. E é sobre essa situação, de os filhos morrerem antes dos pais, que trata o romance mais recente (2011) de Grossman traduzido para o português, lançado pela Companhia das Letras, ‘Fora do tempo’.”

Renato Pompeu era um jornalista ‘fora do tempo’, legendário. Integrou a equipe que fundou o Jornal da Tarde, do Grupo Estado, em 1966 – onde voltaria a trabalhar nos anos 1990. Foi nesta década que tive o prazer, jovem aprendiz, de frequentar a mesma redação que ele. Dedicava-se a fustigar os repórteres novatos com colocações desconcertantes e engraçadíssimas: “Stella, alguma novidade? Não, Renato, tudo como dantes. Então, como faremos jornal amanhã?” A pergunta, que a princípio parecia se deter no plano pessoal, era repetida no tom monocórdico e grave que eram sua marca registrada. Ou, no início do plantão de domingo, editoria de Cidades do já extinto e saudoso JT: “Você está aqui a trabalho ou a passeio?” A pergunta encerrava a lógica do envolvimento com o fazer jornalístico. Ou se imergia, ou se estava a passeio.

Renato foi também um dos fundadores da revista Veja, em 1968 -, e participou da reformulação da Folha de S. Paulo nos anos 1970. Trabalhou ainda na agência United Press International e na equipe da enciclopédia Larousse-Cultural. Ganhou três Prêmios Abril e um Prêmio Esso de Jornalismo, laurea máxima para um jornalista brasileiro. Além do blog, colaborava na revista Caros Amigos, e no Diário do Comércio, em São Paulo.

Convidado a fazer uma análise do jornalismo contemporâneo, em entrevista ao site Observatório da Imprensa em 2008, expôs a produção errática de textos sem base informativa consistente: “Antes, a opinião do jornal só se expressava nos editoriais, hoje se expressa praticamente em cada matéria, mesmo nas noticiosas. Também antes o artigo assinado expressava a opinião da pessoa que assinava, hoje a maioria dos colunistas defende a opinião dos donos do órgão em que trabalha e não a sua própria.” Grande e saudoso Renato Pompeu!

* Stella Galvão é jornalista e colaboradora do blog, professora da Escola de Comunicação e Artes da UnP, mestre pela PUC-SP e autora de ‘Calos e Afetos’ e ‘Entreatos’. Endereço no twitter @stellag19, e-mail: stellag@uol.com.br

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