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por Stella Galvão
Jurava que iria seguir a recomendação médica de não mais degustar aquele líquido escuro, fumegante e cheiroso. Tinha desenvolvido labirintite e vivia às quedas, sequela de outros excessos, alguns apenas administráveis. Outro poderia ser visível numa ampulheta que mede a passagem do tempo. Grânulo a grânulo, sentia cada vez mais longe os tais grãos macerados, moídos e transformados naquela bebida de deuses.
Era refém de um vício precocemente introduzido. Ali pelos sete anos de idade já a fizeram dependente. No começo era só no café da manhã. Tapioca embebida com manteiga de garrafa, uma fatia grossa de queijo de manteiga, leite quente sem nata e, para arrematar o banquete matutino digno da deusa Vênus, uma caneca bem cheia daquela bebida benfazeja.
Se adquirisse o hábito, à mesa, de agradecer ao pai de todos pelo alimento, o primeiro da lista seria o pretinho. Meu Deus do céu, que vício saboroso. Com o passar dos anos, o líquido escuro passou a ser companhia obrigatória do leite da tarde. Largou a farinha láctea e abraçou o pingado com fervor. Nada de cafezinho, esse diminutivo lamentável. Sorvia boas canetas, sim, senhor, que da vida nada se leva sem uma boa dose de estímulo.
O almoço nunca mais seria o mesmo depois que o prazer indizível de uma xícara das grandes passou a coroar com êxito a refeição. Era o estratagema perfeito para não tombar sobre a mesa cheia de trabalhos a rever, textos a estruturar, bibliografias a atualizar, mentes a orientar. Uma saga mental somente tornada possível por aquela semente vermelha, minúscula em tamanho mas incomensurável em efeitos.
Sim, foi a qualidade da cafeteira da cantina o que determinou a escolha pela faculdade, não a fama da instituição ou seu histórico favorável em matéria de ensino. A pós-graduação não podia ser diferente e resultou no pomposo título “Vida e morte sob impacto da cafeína. A saga dos imigrantes redimidos pelas lavouras cafeeiras no interior de São Paulo”. Foi o memorial de uma vida dedicada aos grãos.
Indiferente às recomendações médicas que limitavam o consumo a no máximo 5 xícaras daquelas minúsculas, andava pra cima e pra baixo com a caneca que abrigava a dose máxima de uma única tomada. Como de hábito emborcava três canecas bem cheias, ela vivia no limite entre a dependência e o provável enlouquecimento causado pela abstinência.
Mas a privação não a assustava. Vivia no Brasil, um dos maiores produtores mundiais de café e havia bules ou cafeteiras em cada esquina de cada minúscula área habitada. Além do mais, havia a maravilhosa cafeteira, desenhada por um gênio italiano, que fazia preparados bem encorpados. Bastava uma chama, um pouco de água e uns grânulos de café de ótima procedência.
Ela economizava em cremes, perfumes, roupas e sapatos para não se privar de fartas doses de um café tipo gourmet que havia descoberto no fundo da prateleira de um mercado desses que recebiam da cota de produtos made in Brazil destinados aos apreciadores de café noutras plagas. Indignada, fez campanha pública a favor da permanência em solo brasileiro da tal linhagem de cafeína.
Como a campanha não tivesse surtido grande efeito, especulava recorrer à amiga de Peter Pan, elevada à condição de ‘rosto’ do movimento aguerrido e errático que ganhava as ruas das grandes cidades em busca de causas pelas quais lutar, ainda que fossem alguns caraminguás. Causas certamente com forte teor eleitoral, pensava aquela dependente que não via coisa mais decisiva no curso da vida que arregimentar legiões em defesa da maior riqueza em solo pátrio: o café gourmet.
* Stella Galvão é jornalista e colaboradora do blog, professora da Escola de Comunicação e Artes da UnP, mestre pela PUC-SP e autora de ‘Calos e Afetos’ e ‘Entreatos’. Endereço no twitter @stellag19, e-mail: stellag@uol.com.br
oh Prof nosso lithiun, também estou proibida, vivo entre dores e cedidas ao desejo.