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Nine, a saga potiguar
Foram nove, apenas nove almas irmanadas no desejo comum de usar a tarde de um sábado quente para extravasar o que lhes oprimia por dentro. E por fora também, desde que colocassem aquela agonia para fora, no passeio público. E lá foram eles, os nove soldados da família, da tradição e da fé católica.
Em Natal, apenas nove homens acorreram à convocação da chamada “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, uma reedição algo espectral de uma marcha realizada em 1964 e que seria usada como critério de legitimização popular do golpe militar que instituiu a mais longa ditadura no país, que perdurou até 1985.
O grupo não era exatamente um exemplo de diversidade de pensamento, orientação política, história de vida. Oito já estão, digamos, naquela fase outonal, quando as vicissitudes e as cobranças do cotidiano não pesam tanto. São militares da reserva do Exército, portanto, senhores que vestiram o pijama do afastamento compulsório por tempo de serviço ou faixa etária.
Apenas um, o mais largo de presença e o único com menos de cinco décadas de vida, um estudante de medicina. Reuniram-se, pomposos, diante da 24ª Circunscrição de Serviço Militar, no tradicional bairro da Ribeira. Quem sabe esperançosos por ouvir um tiro de canhão, herança nostálgica dos tempos de chumbo, séculos passados. Até o velho canhão do Forte dos Reis Magos serviria, mas qual. Até este tinha sucumbido à sanha dos comunistas do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Apesar do número minguado, os míseros sublevados de Natal não fizeram de todo feio. Em São Paulo, os órgãos de informação falaram em tão somente 700 pessoas reunidas em uma megalópole com milhões de habitantes. No Rio de Janeiro, o número de inssuretos foi igualmente inexpressivo. “Sei que o número é inexpressivo, mas estamos aqui para mostrar que estamos insatisfeitos. O país passa por uma crise constitucional, com o aumento da violência e da corrupção. Queremos é que o Brasil seja moralizado”, falou o segundo-tenente da reserva do Exército Luis Klinger, de 55 anos, conforme se leu no portal G1, das Organizações Globo, outrora apontada como QG dos que combatiam os vermelhos de todos os quadrantes.
Os nove homens limitaram-se a atender um ou outro jornalista pautado para cobrir o que seria o início de uma importante linha de oposição ideológica ao governo democrático, ficaram juntos por apenas meia hora, tempo absolutamente ínfimo para urdir uma ação armada contra comunistas comedores de criancinhas. Toda a algaravia e o alarido – que não houve – foram encerrados com um abraço simbólico à unidade militar. Patético, cômico.
As frases que dispersaram pelas calçadas quentes da Ribeira foram um triste lamento para a falta do que fazer, um trabalho voluntário, talvez, em instituições que abrigam idosos carentes. Falavam em “moralização”, “ordem”, “corrupção nos poderes”. Outro, com a voz embargada pelo avanço das perdas vocais típicas da idade avançada, balbuciou desejar viver num país “governado por um homem de bem, de boa índole, de boa reputação”. Um general, claro, ou o legislador que se comporta como um equivalente, cheio de fanfarra e exercício arbitrário da condição institucional.
Aos 23 anos, o estudante que se juntou aos idosos nostálgicos enxergou o que muitos estrategistas da política internacional não têm vislumbrado, nem em cenários esquizóides: a interferência internacional na política brasileira. “É preciso que se evite a continuidade desse ato ilegal”, clamou, em meio aos ruídos de um abdome que reclamava a falta de atividade física.
As respectivas mulheres não acompanharam os senhores ciosos da moralidade e da ordem por temer por suas integridades físicas. E o horror da violência urbana, que não é apanágio de uns ou outros, de moralistas ou amorais, terminou por dar o tom final da refrega. “As pessoas de bem estão presas atrás de grades em casa e a bandidagem toma conta das ruas”, vociferou um senhor calvo, ele próprio escravo da limitação de tempo para presenciar, com mais pompa e circunstância, o desdobramento da catarse dos histéricos de plantão por falta do que fazer numa tarde quente de sábado.
* Stella Galvão é jornalista e colaboradora do blog, professora da Escola de Comunicação e Artes da UnP, mestre pela PUC-SP e autora de ‘Calos e Afetos’ e ‘Entreatos’. Endereço no twitter @stellag19, e-mail: stellag@uol.com.br
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