Baú de Estrela

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Stella121Essa tal felicidade

por Stella Galvão

É banal de tão recorrente. A ideia de felicidade toma de assalto todos, sem exceção.  Elegemos dias, situações, sensações felizes vividas ou desejadas. É a felicidade algo mais que uma sensação fugaz que nos enche de contentamento? A ideia de uma vida feliz pertence unicamente aos contos de fada? Será esta ideia o alimento da alma que ansia por prazer e satisfação? Será mesmo a facilidade algo docemente plácido e reconfortante, mas etéreo, alheio à concretude dos dias? Mesmo porque aquilo que se deseja de uma forma tão premente, tão intensa, tão desesperadamente, frequentemente flerta com a frustração, o insucesso, o tombo. É possível viver plenamente a felicidade? Que nos digam os filósofos.

Próximo ao período em que a ideia de felicidade se traduz em uma mesa farta e presentes, muitos presentes, trago do fundo da prateleira um livro minúsculo em tamanho, mas denso, propositivo, provocador. Em ‘A felicidade, desesperadamente’ (editora Martins Fontes), o filósofo francês André Comte-Sponville toma o leitor pela mão e o conduz pelas ideias daqueles que se debruçaram sobre a empreitada de definir essa tal felicidade. Como Pascal, físico, matemático e filósofo, autor de algumas das mais famosas reflexões sobre o tema: “A felicidade é o motivo de todas as ações de todos os homens, inclusive dos que vão se enforcar”, escreveu ele no século XVII.

A felicidade é o motor da aventura humana, diz-nos Sponville, que recua aos gregos, a Sócrates e a Platão, Aristóteles, Epicuro, e depois nos sintoniza com a versão de Spinoza e de Kant sobre esta busca atávica do homem: ser feliz, ou desejar sê-lo, ou ainda buscar meios para imaginar-se em estado de felicidade. O tema andou no limbo, e sofreu um resgate na segunda metade do século XX, e virou produto de consumo imediato. Comprou uma passagem, uma roupa, um pote de manteiga, e fez-se feliz. Compre e drible o mal estar.

Mas é nos gregos que surge a noção de felicidade como parte da tradição filosófica de relacionar o amor à sabedoria e esta à felicidade. Em Epicuro, a relação com a filosofia é plena. “A filosofia é uma atividade que, por discursos e raciocínios, nos proporciona uma vida feliz”. Em Santo Agostinho, filósofo cristão, a vida feliz conjuga-se com um estado de beatitude, quando aquilo que é externo ao ser perde importância, e resulta em uma vida virtuosa cuja recompensa final é a felicidade.

Sponville estabelece seu tratado sobre felicidade em três tópicos complementares. No primeiro – A felicidade malograda ou as armadilhas da esperança -, ele demonstra o imperativo de se buscar a sabedoria como atalho. Ampara-se no escritor francês Albert Camus (1913-1960), em Epicuro (340-270 a.C) e nos estóicos, estes adeptos da frugalidade e da temperança como alicerces dos sábios. E chega à ideia platônica de que a felicidade nos falta porque resulta do desejo permanentemente insatisfeito. O existencialista Sartre, no século XX, faz eco a Platão: “O homem é fundamentalmente desejo de ser” e “desejo é falta”. Não se é feliz por não ter algo. Ao tê-lo, muda-se o foco do desejante por aquilo que ainda lhe falta.

Nesse estado de exaustiva busca de satisfação para um desejo que, ao ser saciado, já é passado, impõe-se o sofrimento da ausência. Então, Sponville evoca Platão, Epicuro e Kant para concluir: “ser feliz é ter o que se deseja”. Chega a Shopenhauer, a quem Sponville atribui a frase mais triste da história da filosofia: “A vida oscila pois, como um pêndulo, da direita para a esquerda, do sofrimento ao tédio”. E o que viria a ser as tais armadilhas da esperança, algo como viver de frustração por desejar sempre o que não está ao alcance. É Pascal quem decreta: “Assim, nunca vivemos, esperamos viver (…)”.

Sponville propõe quatro estratégias para escapar do ciclo de frustração e tédio, esperança e decepção, a última delas defendida mais explicitamente por ele e entendida como a anulação da própria esperança. Essa é a tese exposta no segundo tópico do livro, Crítica da esperança, ou a felicidade em ato, no qual um cordel de céticos formado por Platão, Pascal, Shopenhauer e Sartre é criticado por tentar impingir o estado permanente de infelicidade à humanidade.

Eles pecaram ao confundir desejo com esperança, proclama Sponville, que trata de desacreditar especialmente o discurso platônico do desejo. A felicidade desesperada, conforme o autor, é aquela que nada espera, quando a esperança cede lugar à vontade. Como na lição deixada pelos estóicos: “sempre queremos o que fazemos, sempre fazemos o que queremos”.

A palavra desespero, diz Sponville não significa necessariamente sofrimento ou infelicidade, mas sim a ausência de esperança. “Esperar é desejar sem gozar, sem saber, sem poder”, define. Às favas a esperança porque não ela não se constitui na matéria prima dos heróis, forjados antes pela coragem de fazer e pela vontade. Ou seja, a felicidade no ato, tornada viável no presente, sem devaneios déjà vu ou anseios do que ainda está por vir.

E finalmente, no terceiro tópico: uma sabedoria do desespero, da felicidade e do amor, o autor recorre a Freud e à ideia do estado de satisfação duradouro como prenúncio de mal-estar, o que ele chama de felicidade desesperante. O que se busca, como possibilidade de um meio termo entre o primeiro e o potencial suicida do cético, é o grau zero de esperança. Isso resulta, conforme a adaptação da expressão gaia ciência de Nietzsche para ‘gaio desespero’, numa espécie de sabedoria do desespero.

É sábio, portanto, aquele desespero que abdicou de Platão e que flerta com os ensinamentos de Spinoza. Sponville toma emprestado do capítulo III da ‘Ética’ a ideia spinozana de que o caminho possível é “o da desilusão, da lucidez, do conhecimento, o caminho que deve nos tornar menos dependentes da esperança e nos libertar do temor”.

Há espaço até mesmo para o Mahabharata, o poema épico indiano com mais de 100 mil versos. Dele, reproduz-se um trecho que condensaria a proposta original desse livro de bolso acessível e que pode ser tranquilamente absorvido numa tarde livre em um dia de sol ou chuva. “Só é feliz quem perdeu toda a esperança; porque a esperança é a maior tortura que há, e o desespero, a maior felicidade”. E então, você já se desesperou hoje? Bom sinal.

* Stella Galvão é jornalista e colaboradora do blog, professora da Escola de Comunicação e Artes da UnP, mestre pela PUC-SP e autora de ‘Calos e Afetos’ e ‘Entreatos’. Endereço no twitter @stellag19, e-mail: stellag@uol.com.br

 

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