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por Stella Galvão
Todos os dezembros eles estão inevitavelmente sentados em um cadeirão aveludado que pretende mimetizar um trono. Todos eles devem idealmente ostentar uma barba branca – se for artificial, tem que resistir a eventuais puxões dos petizes, criaturas da menor idade. Uma certa protuberância abdominal também é desejável. Papai Noel, como Rei Momo, devem refletir em suas silhuetas uma saudável propensão à degustação de muitos acepipes.
O personagem que tem o papel de distribuir os brinquedos, ou de convocar a comprá-los nos grandes centros comerciais contemporâneos, atende por nomes diversos conforme a região: Papai Noel, São Nicolau, Santa Clauss etc. Muda a tradução mas não a ritualística, que já passou por diferentes roupagens.
E não é que é relativamente recente a crença segundo a qual seu meio de transporte é um trenó puxado por renas e seu domicílio seja na Groenlândia? Consta que este aspecto da lenda se desenvolveu especialmente durante a II Guerra Mundial, por ocasião da permanência de algumas forças americanas na Islândia e na Groenlândia. A ocasião faz o artifício para uma indústria que somente cresceria em bens e artefatos para consumo.
Em Natal, cidade que agregou ao nome citadino a coincidência da nascer no dia que se atribui à vinda de Jesus Cristo, 25 de dezembro, uma enorme árvore foi montada na parte central do maior shopping. Bichos de pelúcia animados com recursos eletrônicos são a grande atração. Conforme noticiou um jornal local: “É uma maneira de literalmente quebrar o gelo e abrir a temporada de compras de uma das mais importantes datas para o comércio varejista”. Gelo? Na cidade natalina mais tropical do planeta?
E as renas, onde foram parar, por Deus? Lê-se no google que documentos ingleses da Renascença mencionam troféus de rena exibidos por ocasião das danças de Natal, ou seja, anteriormente a qualquer crença em Papai Noel e, mais ainda, à formação de sua lenda. E lá está Papai Noel vestidinho de escarlate, qual reizinho com um séquito de crianças cada vez mais alheias a toda a lenga-lenga de bom comportamento proporcional à qualidade dos presentes a que farão jus. E a criança que, em família com parcos recursos financeiros, tirou ótimas notas e não fez jus às doses diárias de ritalina, artifício medicamentoso dos tempos contemporâneos para sossegar infantes aquietados pela mão da tecnologia? Uma foto ao lado do Papai Noel e estamos conversados?
Mas este ser, com sua barba branca, seu roupão escarlate, botas e o trenó fictício em que viaja, veja-se, também sofre as vicissitudes impostas a qualquer trabalho de ocasião. No maior shopping da cidade natalina, por exemplo, consta um aviso com bela e harmoniosa diagramação. O bom velhinho espera a todos, especialmente os da menor idade e seus acompanhantes, adultos que farão a festa dos comerciantes, das 10h às 22h, em uma jornada que poderia ser qualificada mesmo de exaustiva.
Mas, veja-se a ruptura com a lenda, o mito, a construção imagética: o personagem que encarna a benevolente autoridade e mansidão dos anciões, é naturalmente feito de matéria concreta. E, portanto, não estará disponível ao longo de uma hora nos finais das manhãs e das tardes. Sim, ele deve alimentar-se e cuidar da fisiologia da sua figura de vovô alegre e receptivo, até mesmo com intuito de reunir forças para lidar com os mais insanos representantes da menor idade.
Papai Noel é um personagem com forte carga midiática, sem dúvida. Um grande desfile movimentou neste dezembro as ruas da cidade paranaense de Pato Branco. Lá pelas tantas, lia-se: “Élio Lazarotto, reconhecidamente o Papai Noel do Brasil, se disse muito emocionado. “Já fiz mais de 1.500 eventos, e nenhum me levou às lágrimas como o espetáculo visto em Pato Branco”, disse
Papai Noel. Não se sentindo a estrela principal da festividade, ele fez questão de dizer que, “é importante ter uma figura para lembrar da data, mas é bom saber que o verdadeiro motivo do Natal é o Menino Jesus”. Fecha a cortina.
O escritor Rubem Fonseca já aproveitara o potencial noticioso do idoso de vermelho e todo o espetáculo que o cerca no livro de contos ‘O Cobrador’: “Notícia: O Governador vai se fantasiar de Papai Noel. Notícia: menos festejos e mais meditação, vamos purificar o coração. Notícia: Não faltará cerveja. Não faltarão perus. Notícia: Os festejos natalinos causarão este ano mais vítimas de trânsito e de agressões do que nos anos anteriores. Policia e hospitais preparam-se para as comemorações de Natal. O Cardeal na televisão: a festa de Natal está deturpada, o seu sentido não é este, essa história de Pagai Noel é uma invenção infeliz. O Cardeal afirma que Papai Noel é um palhaço fictício.”
Verdade se diga: a silhueta rechonchuda do personagem símbolo dos presentes natalinos nem sempre transitou pelas sendas da harmonia. O antropólogo francês Lévi Strauss relata a circunstância em que Papai Noel foi praticamente banido em uma cidade do interior da França, Dijon. “Já fazia vários meses que as autoridades vinham expressando desaprovação à crescente importância atribuída pelas famílias e pelos comerciantes ao personagem do Papai Noel. Denunciavam uma ‘paganização’ inquietante da festa da Natividade, desviando o espírito público do significado propriamente cristão desta comemoração, em proveito de um mito sem valor religioso.”
Em 24 de dezembro de 1951, o correspondente do jornal France Soir fez o seguinte relato: “Papai Noel foi enforcado ontem à tarde nas grades da catedral de Dijon e publicamente queimado no adro. A espetacular execução se deu na presença de várias centenas de crianças de patronatos e foi decidida com a concordância do clero, que condenou Papai Noel como usurpador e herético, acusando-o de paganizar a festa de Natal e de nela se ter instalado como um intruso que ocupa espaço cada vez maior. Domingo, às três horas da tarde o infeliz velhinho de barba branca pagou, como muitos inocentes, pelo erro cometido por aqueles que aplaudiam a execução. O fogo abrasou-lhe a barba e ele se esvaiu na fumaça. Ho,ho,ho!
* Stella Galvão é jornalista e colaboradora do blog, professora da Escola de Comunicação e Artes da UnP, mestre pela PUC-SP e autora de ‘Calos e Afetos’ e ‘Entreatos’. Endereço no twitter @stellag19, e-mail: stellag@uol.com.br
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