Baú de Estrela

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Stella1213Cegos no mundo das compras

por Stella Galvão

Um pequeno e organizado grupo com olhos vendados, atitude resoluta e a roupa e o corpo coberto por argila caminha resolutamente. Homens e mulheres trajados a rigor, carregando sacolas de compras, maletas, bolsas, celulares caminham misturam-se aos pedestres e criam uma expressão de estupefação e surpresa naqueles que estão no caminho dessa performance iniciada há um ano, em São Paulo, e que já percorreu algumas cidades brasileiras. A última delas, no dia 9, ocorreu nos corredores do shopping Midwall Mall, em Natal. (Clique aqui para ver)

A reação não tardou, especialmente nas mídias sociais. Muitos reclamaram da ‘hipocrisia’ de se combater o consumo quando este é generalizado. Outros proclamaram o direito de torrarem seus reais como bem entendam, sem ter que refletir sobre coisa alguma além da síndrome do bolso vazio. Muitos ecoaram com entusiasmo a proposta do grupo de atores.

A encenação ocorreu justamente no mês do ano marcado pela certa histeria em torno das compras. Afinal, 50 pratas podem ser trocadas por um cupom que pode fazer qualquer um o feliz ganhador de um carrão zero. Concorrendo com milhares, é claro.

A ação performática pretende provocar uma reflexão sobre o aprisionamento da vida por meio do excesso de trabalho, a automatização do cotidiano, a degeneração ética na política e nos meios financeiro, jurídico e religioso.Foi idealizada pelo encenador potiguar Marcos Bulhões e pelo paulista Marcelo Denny, ambos professores na Escola de Comunicação e Artes (ECA/USP), e realizada pelo grupo Desvio Coletivo.

A proposta visual da performance é inspirada no quadro “A Parábola dos Cegos”, de Pieter Bruegel (1580), em que se vêem cegos conduzindo cegos, cada qual tentando encontrar algum apoio para avançar pelo caminho. (Veja aqui)

O que ‘Cegos’ faz de modo muito articulado (e visualmente impactante) é tratar de uma chaga aberta nos tempos atuais: O consumo a todo custo e a qualquer preço. O deixar-se guiar pelos padrões anunciados nos meios de comunicações, pela indústria de celebridades e do espetáculo fortuito.

A propósito, o filósofo alemão Peter Sloterdijk especula a razão de ser dessa ‘vida para o consumo’: Os indivíduos transformam shoppings centers em espécies de microesferas maternas para aliviar o asfixiamento do estar no mundo, canalizando os sintomas depressivos por meio do ato de consumir produtos efêmeros.

Os grandes equipamentos de consumo, os espaços de lazer e entretenimento para matar o tédio imposto pela vida cotidiana e pelo espaço do ócio, segundo ainda Sloterdijk, um dos teóricos alarmistas da atualidade, remete à transformação da sociedade em um agregado excitado de clientes, compradores e consumidores, que cuidam e mimam a si mesmos de forma contínua. Todos entoando o mantra ‘Eu consumo, portanto existo’. Os proprietários endividados dos utilitários novos e robustos que o digam.

A dimensão simbólica do consumo foi objeto de análise meticulosa por parte do sociólogo francês Jean Baudrillard. Diz ele: o consumo é um modo ativo de relação e de resposta global em que se funda todo o nosso sistema cultural. Não se consome apenas a materialidade do produto, mas os significados que, por intermédio do produto, geram um conluio social em torno de valores compartilhados pela sociedade. Sabe aquela escrava de marca X ou Y? Ela quer o simbolismo embutido na bolsa ou sapato, que passa a mero detalhe.

Outro a pontificar fortemente nesse campo é o filósofo polonês Zygmunt Bauman: vamos às compras, ele diz, pelo tipo de imagem que gostaríamos de vestir e por modos de fazer com que os outros acreditem que somos o que vestimos; por maneiras de fazer novos amigos que queremos e de nos desfazer dos que não mais queremos; pelos meios de extrair mais satisfação do amor e pelos meios de evitar nossa ‘dependência’ do parceiro amado. É doloroso, pensando bem.

Também francês, Gilles Lipovetsky, autor de obras capitais como ‘O império do efêmero’ e ‘A era do vazio’, chega mesmo a considerar o consumo uma fonte real de satisfação, mesmo não sendo sinônimo de felicidade. Consumir como via para a auto-estrada da felicidade utópica, ou para compensar um certo vazio existencial.

O consumo progressivamente adquire uma categoria de adição, de droga útil para proporcionar uma satisfação instantânea frente ao ato de consumir. Esvaziada de valores, resta à sociedade depositar no consumo os ideais de moralidade, ética, solidariedade, enfim, de felicidade. Desprovidos da plena visão, portanto, os consumidores seguem sua trilha rumo à próxima fatura do cartão de crédito.

* Stella Galvão é jornalista e colaboradora do blog, professora da Escola de Comunicação e Artes da UnP, mestre pela PUC-SP e autora de ‘Calos e Afetos’ e ‘Entreatos’. Endereço no twitter @stellag19, e-mail: stellag@uol.com.br

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