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por Stella Galvão
Pinta natalense. Você conhece, você teme? Para alguns autênticos representantes da classe média, pinta é a expressão pronta e acabada do terror. Pinta já matou, trucidou, torturou, canibalizou? Há episódios explícitos de delinquência vinculados ao visual, gestual e linguagem dos pintas? Pensou em marginal, pensou em pinta. Maravilha de estereótipo para os marginais não pintas – sem a associação, eles podem agir mais livremente.
Foi especialmente eloquente mencionar essa tribo urbana em uma banca de vetustos examinadores do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da UFRN e ouvir de uma professora-jornalista: O que são pintas? Não, doutorazinha, não se trata daquela modalidade de saliência dérmica combatida pelos dermatologistas pela possibilidade de associação com o câncer.
A seguinte descrição do pinta é do blogueiro natalense Artur Dutra: “O andar malemolente com os braços abanando a retaguarda, a camisa folgada e a bermuda surfista arriada até aparecer o velho “rêgo” continuam sendo sua marca registrada.” Marca, aliás, é uma palavra chave para definir a identidade de um ‘pinta’: Cyclone, Maresia, Smolder, Pena, Grenish, Cilindro estão entre as preferidas. Uma das frases que identificam essa preferência é clara: “Em terra de pinta quem usa cyclone é rei.”
No último fim de semana, foi amplamente noticiado o protesto marcado pelas redes sociais para acontecer no shopping Midway Mall. Era uma reação ao veto dos seguranças à entrada dos jovens pintas na semana anterior. Na faixa estendida sobre a av. Bernardo Vieira, no acesso ao shopping, lia-se: “Se não há igualdade para os pobres, que não haja paz para os ricos”. E a classe média que circula feliz e contente pelos corredores assépticos do shopping, tolerando um ou outro visual não normatizado por seus próprios padrões, entrou realmente em pânico pelas redes sociais. Choveram pedidos de endurecimento da força policial.
Blogs mantidos por supostos jornalista estamparam: ‘Noite de terror: Protesto dos “Pintas” causa tumulto e pânico no Midway’. O texto da repórter Andrielle Mendes, da Tribuna do Norte, registrou com a dose de objetividade que se exige dos profissionais em situações de conflito: ‘Protesto dos Pinta’ acaba em confusão no Midway. Com a palavra, a repórter:
“O policiamento foi reforçado nas imediações desde o início da tarde. Mesmo assim, houve tumulto e corre e corre nas imediações do shopping. O Midway Mall também aumentou o número de seguranças em todas as entradas e limitou o acesso durante a tarde. Um policial chegou a hostilizar a imprensa e não deixou as equipes de reportagem entrevistarem os jovens detidos, mesmo com o consentimento deles. Além disso, leu as anotações da equipe de reportagem e tentou intimidar os jornalistas. Um policial chegou a ser atropelado pela própria viatura da polícia durante o confronto.” Hostilização da imprensa, leitura de anotações (leia-se intimidação – olha lá o que você vai publicar, hein?), atropelamento de policial. Tudo a cargo da polícia
O que se perde de vista em episódios como estes e também no contexto da estereotipagem social é a carga de preconceitos que trazemos, embutidos pelo meio e pelo grupo sócio-econômico-cultural ao qual pertencemos ou buscamos pertencer. Bebamos em Edgar Morin e seu ‘O Método 3”: As regras/normas culturais geram processos sociais e regeneram globalmente a complexidade social adquirida por essa mesma cultura. Cultura e sociedade estão em estreita relação geradora mútua.
Há, sob o conformismo da nossa maneira de pensar, muito mais do que o conformismo. Há um imprinting cultural, matriz que estrutura o conformismo, e uma normalização que o impõe. O imprinting cultural marca os humanos desde o nascimento, com o selo da cultura, primeiro familiar e depois escolar, prosseguindo na universidade ou na profissão. Inscreve-se cerebralmente desde a infância pela estabilização seletiva das sinapses, inscrições que marcarão o espírito individual no seu modo de conhecer e agir.
A normalização manifesta-se de maneira repressiva ou intimidatória; cala os que teriam a tentação de duvidar ou de contestar, diz Morin. Em muitas sociedades, a liquidação física dos heréticos e desviantes sempre foi uma condição normalizadora. Bruxas, incrédulos, opositores em geral e aqueles que se impõe de modo diverso causam um medo atávico.
Mesmo nas sociedades culturalmente liberais, observa o sociólogo francês, persistem várias intimidações ou pressões do pensamento que reduzem os desviantes e os desvios ao silêncio, ao esquecimento ou ao ridículo. “Um complexo de determinações socioculturais concentra-se para impor a evidência, a prova da verdade do que obedece ao imprinting e à norma.”
É, por outro lado, o lidar com a diferença, explicitada por meio do instrumento do debate, nascido em Atenas, no século V a.C., que há abertura para quebra da normatização generalizada. Como? Por propiciar o encontro de ideias antagônicas e criar uma zona de turbulência. É ela que poderá estimular, entre indivíduos ou grupos, interrogações, insatisfações, dúvidas, busca. Favorece, portanto, a autonomia do espírito e o convívio com a diferença.
É o imprinting democrático que sacraliza e normaliza o que permite a crítica, a dúvida e a livre expressão das verdades antagônicas. No centro, portanto, dos problemas sociais fundamentais do poder, da hierarquia, da desigualdade, está o poder do conhecimento. Conhecer para criticar, para se defender se necessidade houver, e conhecer principalmente para coexistir.
* Stella Galvão é jornalista e colaboradora do blog, professora da Escola de Comunicação e Artes da UnP, mestre pela PUC-SP e autora de ‘Calos e Afetos’ e ‘Entreatos’. Endereço no twitter @stellag19, e-mail: stellag@uol.com.br
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