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A partir de hoje o blog estreia um novo espaço: o Baú de Estrela, assinado pela jornalista e professora Stella Galvão. Trata-se de um espaço onde os temas enfocados tratarão de arte, cultura e comportamento e sempre aos domingos.
Um festival literário de tirar o chapéu
por Stella Galvão
Fartamente estrelado, o céu que unge Natal incorporou, na primeira semana de novembro, outras estrelas de primeira grandeza. Nomes da literatura em prosa e poesia, beletristas, músicos e intérpretes, mais um punhado de jornalistas. Não fosse por outra razão, a atual administração já teria feito valer a confiança depositada pela população com a realização do FLIN – Festival Literário de Natal. É o primeiro de uma série que pretende ser perenizada, desde que gestores políticos de péssima reputação na área cultural e em outras não tomem de assalto a cidade.
No primeiro dia, brilharam na tenda armada na praça Augusto Severo, na Ribeira, o premiado escritor amazonense Milton Hatoum, o poeta Antonio Cícero e a cantora Marina Lima, duo de irmãos compositores e parceiros na arte e na vida. O segundo dia também permitiu uma feliz associação de letra, poesia e música, com o recital proporcionado pela cantora paulista Vania Bastos, o compositor José Miguel Wisnik e o músico Gereba Barreto.
Em cena, Vinícius de Moraes, que mereceu uma aula de alta envergadura ministrada por Wisnisk, professor de literatura na USP. De poeta do livro à poeta da canção, uma trajetória nas letras marcada pela descida a degraus cada vez próximos da cultura popular, para espanto e escárnio dos críticos. Nas letras de Vinicius, disse o professor, há uma feliz mistura de paixão, melancolia e tristeza. E a maior contribuição: trazer para a melodia o que é propriedade própria da harmonia. Vania interpretou com a intensidade costumeira os clássicos do poetinha.
O escritor João Paulo Cuenca trouxe algumas das frases que mais calaram fundo na alma dos que amam a literatura em formato de crônica: ‘Crônica é o ato de travessia pela cidade até que algo nos atravesse. É sempre um esbarrão’. Escritor e frasista de mão cheia, o Cuenca: ‘a crônica abre um zíper no cotidiano. O cronista é uma criança espantada com o que vê. Importante não domesticar esse espanto’. E mais: ‘A boa crônica é como uma paisagem congelada no interior de uma redoma. É uma célula de experiências na qual se usam recursos minimalistas para compor a cena’.
O incrível duo do percussionista Naná Vasconcelos com o instrumentista Lui Coimbra celebrou musicalmente a obra do poeta Mario Quintana, no penúltimo dia do festival. No último dia, o brilho musical e o rastilho de polêmica que cerca Caetano Veloso lotaram a tenda armada na praça Augusto Severo. Um dos méritos da organização foi chamar o compositor para falar ao público. Espetaculoso e prolífico, Caetano listou referências da chamada alta e baixa cultura, delimitação para a qual, disse ele, a geração dos anos 1960 deu de ombros.
Falou do necessário diálogo entre dois extremos, dos poemas de Lord Byron, Edgar Allan Poe, da dramaturgia de Shakespeare, a ícones da canção popular daquele período, Elvis Presley lá fora e Roberto Carlos na Jovem Guarda. E, entre eles, o caldeirão da Tropicália no qual imergiu o grupo de jovens baianos que ele compunha. Citou Tom Jobim (música clássica x MPB) para responder se há demarcação entre poesia e letra de música. ‘Eu não faço, mas existe’. Ele banha-se na cultura popular mas não deixa de cultivar a leitura de clássicos da literatura: Proust, Thomas Mann e Stendhal, de quem bebeu gota a gota a trama de ‘O vermelho e o negro’. Disse Caê: De lá veio a maior luz’.
Fazendo escada explícita para o baiano, o poeta carioca Eucannã Ferraz foi o protagonista da maior babação em torno do ídolo deste festival, após a leitura de dois textos dele por aquele: ‘só escrevi os poemas para que um dia Caetano os lesse’. E não se dando por contente, ainda sapecou: ‘Tudo o que passa por ele é como se passasse por uma montanha’. Oi? Não importa, a plateia foi abaixo e invadiu o palco em busca de uma lasca do Caê, que escapou rapidinho para trocar a muda de roupa no hotel. Ele faria o show de encerramento, três horas mais tarde, com a praça e a Ribeira lotada e febril.
Finalmente, a última mesa do FLIN trouxe o jornalista e escritor carioca Zuenir Ventura, autor, entre outros, de ‘1968: o ano que não terminou’, ‘Chico Mendes: crime e castigo’. O octogenário senhor, amável e carismático, teve como mestre de cerimônia o jornalista potiguar Cassiano Arruda, que soube dar destaque ao convidado, em estilo diverso de outro potiguar, Vicente Serejo, que refletia nos olhos a satisfação de ter tocado eruditamente o ego do interlocutor João Cuenca, muito mais novo e impressionável.
Zuenir falou do jornalismo na era da web com uma visão não apocalíptica: ‘o advento de uma nova tecnologia obriga a anterior a se reinventar e aperfeiçoar’. A notícia online, disse o mestre, necessita de endosso. São característicos da internet certa desconfiança no que se lê e a impunidade frente às inverdades veiculadas. O próprio Zuenir foi declarado morto, como contou entre risos, por um grande portal de notícias, tendo ‘ressuscitado’ três horas depois. E finalizou, entre sonoras palmas, tocando no ponto nevrálgico da polêmica em torno das bibliografias não autorizadas: ‘Quem sofreu censura prévia não quer mais esse fantasma sobre nossas cabeças’.
* Stella Galvão é jornalista e colaboradora do blog, professora da Escola de Comunicação e Artes da UnP, mestre pela PUC-SP e autora de ‘Calos e Afetos’ e ‘Entreatos’. Endereço no twitter @stellag19, e-mail: stellag@uol.com.br
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