Entrevista

Carlos Siqueira diz à CartaCapital: o mea-culpa da esquerda é imprescindível

Segundo partido mais longevo do Brasil, precedido apenas pelos comunistas, o PSB acaba de completar 70 anos em meio a uma divisão interna. O racha pôde ser notado na votação da denúncia contra Michel Temer na Câmara. De seus 35 deputados, 22 votaram contra o presidente, dois se ausentaram e 11 ajudaram a livrar o peemedebista da condição de réu por corrupção passiva.

Os pró-Temer são conservadores seduzidos pelos encantos do governo, um grupo que cresceu a partir de 2013, no período em que Eduardo Campos ampliou o leque de alianças para vitaminar sua candidatura presidencial. Hoje, esse pessoal começa a perder espaço.

Após romper com o PT no segundo mandato de Dilma Rousseff e ter apoiado abertamente o impeachment, o PSB busca se reafirmar à esquerda e cerra fileiras na oposição às reformas neoliberais.

Apesar do ambiente adverso, Carlos Siqueira, presidente da legenda socialista, renova as esperanças na construção de um projeto capaz de aglutinar as forças progressistas. Para tanto, seria indispensável uma profunda e honesta autocrítica. “Todos os partidos à esquerda estão desafiados a se renovar há muito tempo”.

CartaCapital: O que esperar do impopular governo Temer após sua salvação na Câmara dos Deputados?

Carlos Siqueira: A decisão é reveladora da forte ascensão do conservadorismo no Brasil. Poucas vezes o Congresso deu as costas para a sociedade dessa maneira, diante de denúncias tão graves.

O conservadorismo não está apenas no Congresso, também está em uma parte da sociedade. Parece-me significativo que não tenha havido pressão das ruas. Os setores que pediram o impeachment de Dilma Rousseff e se mostravam tão indignados contra a corrupção, agora ficam recolhidos a seus aposentos.

Tampouco os setores populares tiveram a capacidade de uma mobilização para ao menos deixar o Congresso constrangido. Por outro lado, seria trocar seis por meia dúzia. Temer representa um retrocesso monumental, talvez sem precedente na história política republicana. Rodrigo Maia não iria rever o programa ultraliberal em curso. Talvez, pudesse dar até dar mais força a essa agenda.

CartaCapital: A ascensão do conservadorismo também é consequência da não-politização da sociedade nos governos do PT?

Carlos Siqueira: Houve aspectos positivos nos dois governos de Lula e também no primeiro de Dilma. O segundo foi desastroso, politicamente e economicamente. Por outro lado, temos que constatar também que houve uma espécie de ilusão de classe.

Pensou-se que os grandes interesses plantados no Brasil, internacionais ou nacionais, estariam apoiando esse governo ad eternum. Por que apoiavam? Não houve ousadia mínima para fazer ao menos alguma reforma de natureza estrutural.

Uma das prioridades deveria ser a reforma política. Em 2003, quando Lula assumiu, já era tempo de pensar: “Não podemos mais fazer política como sempre se fez. Precisamos criar uma democracia mais sólida, com partidos mais programáticos”. Em vez disso, tratou-se de fazer uma composição, carregando todos os maus costumes que já haviam na política. Em certos casos, até os aprofundando.

O presidente Lula optou por uma aliança preferencial com o PMDB. Creio que, naquele momento, o núcleo do governo deveria ser PT, PSB, PDT e PCdoB, os quatro que desde 1989 estiveram com ele. A partir desse núcleo, poderia se agregar o que fosse necessário para ter maioria no Congresso, mas de maneira cuidadosa. O governo acabou, do ponto de vista dos costumes, se igualando aos que já estavam no poder há muito tempo. O projeto do PMDB é estar no poder sempre, não importa qual seja o governo.

Carta Capital: Na votação que salvou Temer, a maioria do PSB votou a favor da denúncia, mas um terço da bancada ficou do lado dele.

Carlos Siqueira: O PSB fez 70 anos agora. Em várias ocasiões, o partido sofreu a ameaça de perda da sua identidade. Vivemos um momento desses. Temos alguns parlamentares, pelos quais tenho grande respeito pelas suas convicções liberais, mas sempre digo a eles: essas convicções jamais se transformarão no programa do PSB. Eles têm o direito de ter as próprias convicções, mas isso não é da tradição de um partido socialista e nem fomos criados para isso.

CartaCapital: Dá para imaginar que haverá até o fim da janela de filiação partidária algum tipo de depuração do partido?

Carlos Siqueira: A depuração acontece pela resistência dos militantes e dos setores da própria direção. Não é verdade que o partido está dividido. Quem está dividida é a bancada, uma parte dela. O PSB, por unanimidade, em reunião com o quórum qualificado, na presença de governadores, deputados e senadores, propôs a renúncia do Temer, assinou o processo de impeachment contra ele e adotou a bandeira das eleições diretas.

Certas pessoas que vieram para o partido, algumas inadvertidamente, outras deliberadamente, pensam que podem transformar o PSB em um partido liberal. Nunca pedi para ninguém sair, assim nunca pedi para nenhum desses entrar.

CartaCapital: Por hora, a esquerda só se une na resistência ao governo Temer. Qual é o passo seguinte, uma união em torno de um projeto?

Carlos Siqueira: Depois de o partido mais importante de esquerda ter chegado ao poder, é preciso fazer uma avaliação honesta e uma autocrítica sobre esse período. Teve coisas positivas, mas também negativas. Precisamos de uma proposição nova.

Todos os partidos à esquerda estão desafiados a se atualizar e a se renovar há muito tempo. Desde o fim do socialismo real, isso não foi feito de maneira adequada. A esquerda precisa fazer um estudo mais profundo sobre a nova realidade internacional, a fase que vive o capitalismo, de profunda acumulação de riqueza e que promove ideologicamente o conservadorismo no planeta.

Por outro lado, acho que a resistência já é alguma coisa. Acumulam-se forças para o futuro. Sou otimista. Nos próximos anos, a esquerda pode ter novamente o seu projeto de País, capaz de provocar transformações mais efetivas.

CartaCapital: Nos próximos anos? Seu otimismo não começa em 2018?

Carlos Siqueira: O próximo ano será muito difícil para a esquerda. Temos um ambiente muito adverso às forças progressistas. Não quer dizer que isso não possa mudar. Os resultados dessas políticas liberal-conservadoras são tão desastrosos que podem criar um ambiente inverso também. Não sei, porém, se isso será possível até 2018.

Acho que será necessário um esforço maior de pensar o País, de resistir, em primeiro lugar, e também pensar perspectivas diferentes para o País. Precisamos aglutinar os partidos que têm compromisso com a população, sobretudo os mais vulneráveis, com um projeto de desenvolvimento que leve em consideração a harmonização entre uma política econômica e os direitos sociais.

CartaCapital: A ideia de parlamentarismo está de volta. Qual a sua opinião sobre isso?

Carlos Siqueira: É um sistema que pode melhorar, facilitar a superação de crises. Creio, porém, que no atual momento viria de uma maneira um tanto oportunista. Fora o Lula, não há outro líder, nem à esquerda nem à direita. A ausência de lideranças fortes no plano nacional leva a direita a querer ter o controle via parlamentarismo.

Esse regime exige, contudo, um líder nacional, capaz de eleger o primeiro ministro. Nossa falta de lideranças é fruto da deformação do sistema partidário e eleitoral, que vivenciamos nos últimos 30 anos.

CartaCapital: Não seria uma ditadura do Centrão?

Carlos Siqueira: O Centrão, na verdade, é a base sólida do governo Temer, apesar de haver uma discordância do PSDB em aspectos secundários. O Centrão é o poder pelo poder. Você não o vê discutindo os problemas do País com a população. Esse grupo discute apenas eleições e o exercício do poder.

Eleições são essenciais na democracia, mas fazer política não se resume a isso. Para nós, da esquerda, sem transformações, sem desenvolver a indústria, sem gerar emprego, sem melhorar a vida das pessoas, não faz sentido o poder. Para os conservadores, no entanto, é a manutenção do status quo.

CartaCapital: Como o senhor avalia a atual política econômica?

Carlos Siqueira: É trágica para o País, porque tem reflexo não apenas no momento,mas a médio e longo prazo. Os prejuízos são incalculáveis. É a política econômica mais ortodoxa e mais conservadora dos últimos 30 anos, com uma visão social muito ruim. Os preços já estão absurdos para uma população que tem uma renda baixíssima.

Não se discutem os problemas do Brasil. O grande debate é se Temer termina ou não o mandato, se a equipe econômica se mantém ou não. É uma espécie de ditadura do capital, na verdade. É um fenômeno internacional, mas com um reflexo muito grave no Brasil, porque nossa desigualdade é social e regional. O impacto é maior do que em países minimamente equilibrados, como os europeus.

Nem os militares tiveram coragem de propor o desmonte da legislação trabalhista. Dentro do sistema capitalista, é preciso haver equilíbrio entre o trabalho e o capital, e não um sistema que favorece o lado mais forte. A reforma trabalhista é reveladora do que pensa essa gente, arrasadora das poucas conquistas importantes que foram alcançadas nos últimos 30 anos, como a Seguridade Social. Se tiverem força política, pode ter certeza de que vão tocar a reforma da Previdência, porque esse é o cerne do pensamento liberal e conservador em alta no Brasil e em voga no governo.

É um horror político em termos sociais e econômicos.

CartaCapital: Apesar disso, as manifestações populares, quando ocorrem, se resumem a um grupo específico da sociedade.

Carlos Siqueira: Há uma certa letargia na sociedade brasileira que não consegue compreender exatamente o que está acontecendo. Isso se deve muito aos maus costumes que se plantou em todos os partidos, em todas as forças políticas. É como se todos se igualassem por baixo. A sociedade fica observando: “E aí? E agora?”.

Apenas setores específicos, beneficiados muito diretamente pelos governos progressistas, é que se mobilizam, mas nem tanto. A sociedade como um todo entrou numa fase de refletir, e deseja outra coisa que não isso. O pior é que a sociedade não enxerga uma perspectiva para o curto prazo, não vê grandes diferenças entre uns e outros.

Talvez um pouco mais na frente, com os resultados desastrosos da política econômica e social desse governo, as coisas ficarão mais claras, porque não poderão dar bons resultados. A população mais pobre, vulnerável, sentirá com mais força tudo isso.

CartaCapital: Então é bom Temer “sangrar” até 2018?

Carlos Siqueira: Não diria que isso é positivo, mas a permanência dele pode ser pedagógica, para que a população entenda o que está acontecendo. Mesmo com os erros cometidos pela esquerda, em especial pelo PT, mas também por outros, por todo o sistema político, as diferenças existem.

Gosto de citar Ariano Suassuna: quando você vê um sujeito dizendo que não existe mais esquerda e direita, você só pode ter uma certeza, que essa pessoa é de direita. Se não existissem mais classes sociais, estaríamos no paraíso.

CartaCapital: O PSB não tem fazer sua autocrítica também? Em 2013, de olho na eleição presidencial, Eduardo Campos filiou políticos que não se identificam com o PSB. Depois o partido abraçou a candidatura de Marina Silva, alinhada com a agenda liberal.

Carlos Siqueira: Há uma tendência mundial de candidaturas presidenciais alargarem o horizonte, no sentido de agregar mais. Em certa medida, isso é compreensível. Acredito que, depois, o Eduardo Campos daria um cavalo de pau. Sobre a candidatura de Marina Silva, não gosto de me referir a ela, porque não apoiei. Ao contrário, eu me desliguei dela. Acredito que não era exatamente um programa liberal, havia preocupações sociais bem interessantes, acho que tem a ver com certo vento mais centrista.

Mas eu concordo. Aceitamos acriticamente uma série de coisas que não deveríamos ter aceitado. Nossa parte da autocrítica deve ser feita pela esquerda sempre, porque nós deveríamos ter pressionado mais desde o começo do governo Lula, para que os governos de esquerda do nosso partido pudessem ter sido mais progressistas, ter avançado mais.

Foto: Humberto Padrera/PSB

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