O blog cria um novo espaço pra relembrar causos e editoriais, clique aqui para acessar o e-book.
Arquivos
Links Rápidos
Categorias
E-book
O blog cria um novo espaço pra relembrar causos e editoriais, clique aqui para acessar o e-book.
Coletânea de Causos
Incentivado por amigos resolvi escrever também causos particulares vivenciados ao longo dos anos. Alguns relatos são hilários, e dignos de levar ao programa Que História é Essa, Porchat. Seguem os causos em forma de coletânea.

por Fernando Horta, no Brasil 247
O fascismo nunca bate à porta de uniforme e com a bandeira na mão. Ele se infiltra pelas frestas das instituições democráticas, aninha-se nas exceções não escritas, alimenta-se dos “acordos de cavalheiros” e cresce na covardia de quem deveria fazer valer princípios e leis. No Brasil de 2025, assistimos a um déjà-vu perturbador: a mesma engenharia institucional que quase destruiu o país durante a Operação Lava Jato ameaça ressurgir, desta vez no Supremo Tribunal Federal, com o potencial de entregar o país novamente ao caos autoritário.
O fascismo brasileiro contemporâneo opera em um binômio mortal: a ignorância de grande parte de seus apoiadores e a busca incessante por poder dentro das instituições. Enquanto a massa ignara se deixa seduzir por narrativas simplistas e teorias conspiratórias, um pequeno grupo de operadores jurídicos e políticos trabalha metodicamente nos bastidores, manipulando regimentos, fabricando exceções e construindo maiorias artificiais para garantir que a lei seja o que eles decidem que ela seja.
A Lava Jato que Poderia Não Ter Ocorrido
Poucos brasileiros sabem que a Operação Lava Jato, tal como a conhecemos, poderia simplesmente não ter acontecido. Não fosse um conluio meticulosamente articulado no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Sérgio Moro seria apenas mais um juiz federal de Curitiba, e não o protagonista de uma das maiores tragédias jurídicas da história brasileira.
A história começa antes mesmo da Lava Jato ganhar notoriedade pública. Moro, que já investigava o deputado José Janene do PP do Paraná, deliberadamente ocultou do Judiciário que o político era o investigado – uma manobra para evitar que o processo fosse remetido ao Supremo Tribunal Federal, onde teria competência natural. Ao declarar que investigava apenas a “mulher” e “secretária” de Janene, Moro garantiu que o caso permanecesse sob sua jurisdição.
O primeiro recurso da futura Lava Jato subiu ao TRF-4, e aqui começa o conluio. Pela regra do sistema judiciário brasileiro, o primeiro processo estabelece a “prevenção”: todos os recursos subsequentes do mesmo tema serão encaminhados ao mesmo grupo de desembargadores. Era crucial, portanto, definir quem julgaria aquele primeiro recurso – e, por consequência, todos os milhares que viriam depois.
A desembargadora sorteada foi Claudia Cristina Cristofani. O que deveria ser o fim da história por obra do acaso foi, na verdade, apenas o começo de uma farsa. Em uma manifestação que desafiava qualquer protocolo judicial, Cristofani simplesmente “perguntou” se o desembargador João Pedro Gebran Neto não gostaria de pegar aquele recurso. Gebran, prontamente, respondeu que sim – que a Lava Jato era dele.
Assim, com um simples “acordo de cavalheiros”, o sistema de sorteio foi neutralizado e o conluio consolidado. Mas faltava ainda um elemento: a presidência do TRF-4. Nas discussões sobre competência das varas, quem dava a palavra final era o presidente do tribunal. Em uma mudança radical da lógica institucional – que tradicionalmente colocava o desembargador mais antigo no cargo –, o TRF-4 elegeu o mais conservador e alinhado ideologicamente: Carlos Eduardo Thompson Flores.
A engrenagem estava montada. Durante toda a fase dos recursos sobre Lula, os mesmos cinco nomes se revezaram nos julgamentos: Moro na primeira instância; Gebran Neto, Leandro Paulsen e Victor Laus na segunda; e Thompson Flores como presidente. Ninguém mais. Um clube fechado decidindo o destino político do país. Dialogos da Operação Spoofing revelaram que o próprio procurador Deltan Dallagnol reconheceu essa proximidade suspeita: “eles [os desembargadores do TRF-4] apenas dependem do que o Moro quer”, escreveu.
Quando o desembargador Rogério Favreto, em regime de plantão, determinou a soltura de Lula em julho de 2018, foi o mesmo Thompson Flores quem contrariou a ordem, numa demonstração de poder que expôs o quanto o TRF-4 operava como linha auxiliar da Lava Jato, e não como instância revisora imparcial.
O Supremo Tribunal Federal assistiu de olhos fechados – ou, pior, de olhos bem abertos e coniventes – aos absurdos cometidos. Anos depois, investigações do Conselho Nacional de Justiça revelariam “possível conluio” entre operadores do sistema de justiça, com indícios de destinação irregular de valores bilionários e descumprimento de decisões do próprio STF. Mas para Lula, para o Brasil, para a Petrobras e para a democracia brasileira, era tarde demais. O estrago estava feito.
A Simetria Assustadora: Fux e a Segunda Turma
Agora, em outubro de 2025, o Brasil assiste à reencenação do mesmo teatro do absurdo. O ministro Luiz Fux, que foi o único voto vencido na condenação de Jair Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado, conseguiu autorização para deixar a Primeira Turma do STF e migrar para a Segunda Turma. A mudança, por si só, seria um movimento administrativo banal. Mas Fux é o relator do recurso de Bolsonaro contra sua primeira inelegibilidade – aquela decorrente da reunião com embaixadores estrangeiros no Palácio do Alvorada, onde o então presidente disseminou mentiras sobre o sistema eleitoral brasileiro.
A composição das duas turmas é radicalmente diferente. A Primeira Turma – apelidada no meio jurídico de “Câmara de gás” por sua postura mais rigorosa – é formada por Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Cristiano Zanin e Flávio Dino. Já a Segunda Turma conta com Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Edson Fachin e os dois ministros indicados por Bolsonaro: André Mendonça e Nunes Marques.
O cálculo é simples e cínico: na Primeira Turma, as chances de Bolsonaro reverter sua inelegibilidade são praticamente nulas. Na Segunda Turma, com Fux, Mendonça e Marques – este último votando sistematicamente alinhado aos interesses bolsonaristas –, forma-se uma maioria de 3 a 2 favorável ao ex-presidente.
O que torna essa manobra ainda mais grave é a indefinição sobre se Fux poderá “levar consigo” os processos dos quais é relator ao mudar de turma. Por um regimento nebuloso e interpretações convenientes, abriu-se uma brecha: como o mérito ainda não foi julgado pela Primeira Turma (apenas questões processuais, como o impedimento de Zanin), argumenta-se que Fux poderia transferir o caso.
É o mesmo padrão. O mesmo modus operandi. Mais um “acordo de cavalheiros” que subverte as regras estabelecidas, cria uma maioria artificial – uma espécie de gerrymandering judicial – e coloca o destino da democracia nas mãos de uma minoria que opera segundo interesses políticos, não jurídicos.
E não se trata apenas do processo da reunião com embaixadores. Bolsonaro enfrenta uma segunda inelegibilidade pelo uso político das comemorações de 7 de Setembro de 2022. Se os processos são “atraídos” pela prevenção – por tratarem do mesmo objeto e envolverem as mesmas partes –, todos os recursos sobre a inelegibilidade de Bolsonaro poderiam ser julgados pela Segunda Turma de Fux. Uma vitória ali reabilitaria o ex-presidente para as eleições de 2026.
O Fantasma de Trump e a Farsa Anunciada
O cenário que se desenha é sombrio e já conhecido dos brasileiros que viveram 2018. Com Fux consolidando uma falsa maioria na Segunda Turma, Bolsonaro teria suas inelegibilidades revertidas às vésperas das eleições de 2026. Ele concorreria novamente à presidência, dividindo o país e mobilizando a máquina de desinformação e ódio que nunca foi efetivamente desmontada.
O resultado das eleições, qualquer que fosse, terminaria na mesa de Donald Trump. O presidente dos Estados Unidos, que já demonstrou simpatia pelo bolsonarismo e desprezo pelas instituições democráticas latino-americanas, usaria precisamente esse mecanismo de desconstrução da justiça brasileira – que inicia com Fux “levando” os processos para a Segunda Turma num “acordo de cavalheiros” – para deslegitimar o resultado eleitoral.
Se Lula vencer, Trump questionará a lisura do pleito, alegando perseguição judicial contra Bolsonaro e manipulação do sistema eleitoral. Se Bolsonaro vencer, as forças democráticas brasileiras questionarão a legitimidade de um candidato que só pôde concorrer por meio de manobras judiciais. Em ambos os cenários, a pressão internacional, as sanções econômicas e até medidas mais drásticas contra o Brasil estariam sobre a mesa. A soberania nacional, mais uma vez, seria refém da covardia de nossos próprios tribunais.
É a construção deliberada da crise institucional. É o fascismo usando as ferramentas da democracia para destruí-la por dentro, exatamente como fez durante a Lava Jato, quando o discurso de combate à corrupção mascarou um projeto de poder que resultou na eleição de Bolsonaro e em uma das piores crises da história brasileira recente.
A Covardia Como Método
O que há em comum entre a Lava Jato de Moro e Gebran e a manobra de Fux na Segunda Turma? A covardia institucional. A incapacidade – ou a recusa deliberada – de fazer valer leis, princípios e regras claras quando isso significaria enfrentar pressões políticas e midiáticas.
Quando Claudia Cristofani “ofereceu” os processos da Lava Jato a Gebran, nenhum corregedor a questionou. Quando Thompson Flores foi eleito presidente do TRF-4 numa eleição que rompia com a tradição, nenhuma entidade de classe se manifestou. Quando ficou evidente que apenas cinco pessoas julgavam todos os casos de uma operação que afetava o destino político do país, nenhum ministro do STF se levantou para questionar o óbvio.
Agora, quando Fux solicita mudança de turma mantendo a relatoria de um processo politicamente sensível, quando se fala abertamente em “levar processos” de um colegiado para outro, quando se admite que a composição das turmas determinará o resultado do julgamento – e não os fatos ou o direito –, novamente o silêncio é ensurdecedor.
São os acordos insondáveis, as exceções que não constam nos regimentos, as interpretações convenientes que se moldam segundo o interesse político do momento. São, enfim, os “acordos de cavalheiros” – eufemismo elegante para práticas que corroem o Estado de Direito e pavimentam o caminho do autoritarismo.
A História Não Se Repete; Os Homens Sim
Há quem diga que a história se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa. Mas não é a história que se repete. São os homens que, incapazes de aprender com seus erros, condenados pela covardia ou pela cumplicidade, repetem os mesmos padrões destrutivos no tempo.
O Brasil de 2025 está diante da mesma encruzilhada do Brasil de 2015. De um lado, a possibilidade de fortalecer instituições, fazer valer a lei de forma isonômica, garantir que os jogos sejam jogados segundo regras claras e previamente estabelecidas. De outro, a tentação dos atalhos, dos arranjos de bastidores, das exceções que beneficiam os poderosos e punem os adversários.
Se escolhermos novamente o caminho dos “acordos de cavalheiros”, se permitirmos que Fux opere o mesmo truque que Cristofani operou na Lava Jato, estaremos não apenas repetindo um erro – estaremos confirmando que aprendemos nada com a tragédia recente. Estaremos, conscientemente, abrindo as portas para que o fascismo volte a se instalar nas instituições, desta vez talvez de forma definitiva.
A diferença entre uma democracia e uma ditadura não está apenas na Constituição escrita, mas na disposição cotidiana de fazer valer essa Constituição contra as pressões, contra os interesses, contra os “acordos de cavalheiros”. Quando essa disposição falta, quando a covardia se torna método, o fascismo não precisa tomar o poder pela força. Ele simplesmente se senta na cadeira que deixaram vazia para ele.
O Brasil está, mais uma vez, diante dessa escolha. A história já mostrou o preço de escolher errado. Resta saber se somos capazes de aprender – ou se estamos condenados a repetir, indefinidamente, os mesmos erros no tempo.
*Fernando Horta é historiador
Foto reproduzida da Internet
Deixe uma resposta