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Política

Porte de maconha sai do campo penal e entra na esfera da saúde

Está no Brasil 247

O ministro Gilmar Mendes afirmou que a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o porte de maconha para uso pessoal representa uma mudança radical na abordagem estatal, deslocando o usuário da esfera penal para a de saúde pública.

O magistrado discursou no painel “O Significado da Decisão do STF sobre Porte da Cannabis para Uso Pessoal”, durante o evento “A Política Nacional sobre Drogas: Um Novo Paradigma”, realizado pelo Brasil 247TV 247 e Consultor Jurídico, com apoio do Grupo Prerrogativas, em Brasília-DF, nesta terça-feira (18).

“Buscamos humanizar o tratamento dispensado aos usuários, deslocando os esforços do Estado do campo penal para o campo de saúde pública”, declarou Mendes.

Segundo ele, a nova diretriz do STF abre espaço para um modelo de acolhimento, permitindo que consumidores sejam inseridos no sistema de saúde e recebam tratamento adequado.

O usuário merece atenção de saúde pública”, reforçou Mendes.

A medida visa corrigir distorções na aplicação da Lei de Drogas, que, segundo o ministro, não oferecia critérios claros e acabava por intensificar a criminalização de meros consumidores.

“A lei, tal como vinha sendo aplicada, levou a inúmeras distorções. Não oferecia critérios específicos. A lei, que aparentemente pretendia suavizar a condição de usuários, acabou por intensificá-la, e levou ao enquadramento do consumidor como traficante”, explicou.

Para ele, o Congresso Nacional agora tem o papel de aprimorar os critérios para a diferenciação entre usuários e traficantes. “O Congresso deve adotar critérios permanentes, e, espera-se, objetivos”, afirmou.

Ele também destacou que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) promoverá mutirões carcerários para revisar processos e garantir que a nova diretriz do STF seja corretamente aplicada pelos tribunais.

O julgamento do tema foi concluído nesta segunda-feira (17) no plenário virtual do STF, onde os ministros decidiram, por unanimidade, manter a íntegra da decisão que descriminaliza o porte de maconha para uso pessoal. O tribunal também fixou o limite de 40 gramas para diferenciar usuários de traficantes.

Impacto no combate ao crime organizado

A secretária nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos do Ministério da Justiça, Marta Machado, destacou no evento que a decisão do STF reforça uma abordagem mais eficiente no combate às organizações criminosas.

“Essa decisão não é incompatível com o enfrentamento às organizações criminosas. Agora os esforços da segurança pública poderão se voltar seriamente às organizações, sem que os policiais se preocupem na delegacia com um cigarro de cannabis”, afirmou.

Para ela, a nova diretriz permite que as forças de segurança concentrem esforços no tráfico de grandes proporções, sem desperdiçar recursos com a criminalização de meros usuários.

Machado também ressaltou que o proibicionismo no Brasil vinha sendo aplicado com viés racial, algo reconhecido de forma unânime pelos ministros do STF. Segundo ela, a decisão do Supremo reforça critérios mais claros para coibir arbitrariedades policiais e impedir que a criminalização do porte de maconha continue servindo como ferramenta de repressão desigual.

A secretária citou o exemplo de Portugal, onde a mudança no regime jurídico das drogas foi acompanhada da criação de uma ampla rede de cuidados para os usuários.

“A mudança do regime jurídico não é um toque de mágica. A mudança de Portugal veio junto com a criação de uma ampla rede de cuidado”, disse.

Segundo Machado, o Brasil precisa avançar na implementação de políticas públicas de atenção ao usuário, incluindo a liberação de um fundo específico para ações de acolhimento. “Discutimos diariamente com o Ministério da Saúde”, pontuou.

A decisão do STF também reacende o debate sobre a atuação das forças de segurança. Em Portugal, país recentemente visitado por Machado, a descriminalização foi acompanhada pelo fortalecimento da chamada “polícia de proximidade”, um modelo que estabelece novas diretrizes para a abordagem de usuários nas ruas.

“Conhecemos uma polícia de proximidade, o que cria desafios de criar um protocolo para uma nova atuação da polícia na rua”, explicou.

No Brasil, o desafio será adaptar as forças de segurança a essa nova realidade, garantindo que a decisão da Corte se traduza em avanços concretos na política de drogas e na segurança pública, finalizou.

Impacto no sistema penal 

O coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (CNJ), Luis Lanfredi, chamou a atenção para a dimensão do impacto da decisão no sistema penal brasileiro.

“São 400 mil processos relacionados no Brasil”, ressaltou.

Para ele, a experiência de Portugal serve como referência, mas é preciso adaptar a política ao contexto nacional. “O modelo português é uma boa referência, mas precisamos construir um modelo genuinamente brasileiro. Temos boas referências e bons paradigmas”, afirmou.

Lanfredi também destacou a necessidade de priorizar o atendimento à saúde, em detrimento da repressão penal. “O ponto da virada é menos judiciário, mais saúde e menos repressão, mais cuidado”, concluiu.

Impactos raciais

O advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Pierpaolo Bottini, enfatizou os impactos raciais da criminalização do porte de drogas e a importância da decisão do STF na correção de desigualdades raciais.

“Sem fixar um critério quantitativo, como o STF o fez, abria-se brecha para criminalização de grupos raciais”, afirmou.

Bottini argumentou que o sistema penal, por meio da legislação antidrogas, tem historicamente contribuído para ampliar a desigualdade social. “O sistema penal, no caso das drogas, através da lei, contribui sim para acirrar a desigualdade social com o silêncio cúmplice da academia”, afirmou.

Para Bottini, o Brasil tem um papel fundamental no debate global sobre políticas de drogas e pode avançar no sentido de garantir maior equidade na aplicação das leis.

“O Brasil, que tem grande lugar de fala, pode contribuir imensamente com esse debate no plano constitucional, corrigindo as distorções no caso concreto de drogas e garantir isonomia, estendendo os benefícios das classes superiores às mais humildes.

“O princípio da igualdade foi o vetor teleológico da decisão do STF”, explicou.

Segundo ele, o uso desse princípio é essencial para corrigir as discrepâncias na aplicação da lei penal. “O uso do princípio da igualdade corrigirá a omissão e a aplicação distinta da norma penal”, concluiu.

O jurista alertou ainda para os riscos do direito penal como instrumento de aprofundamento das divisões sociais. “Se não pararmos de usar o direito penal como forma de acirrar divisões sociais, afastaremos as instituições daqueles que são submetidos a elas”, finalizou.

Impacto na guerra às drogas

A advogada e professora de Direito Penal e Criminologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Luciana Boiteux, alertou que, apesar da decisão do STF ser um avanço, ainda há desafios estruturais na política de drogas no Brasil, marcada pela violência da guerra às drogas contra as comunidades mais pobres.

“Precisamos efetivamente, apesar de comemorarmos a decisão, transformar radicalmente a sociedade, pensando em não ter mais a violência da guerra às drogas. Que essa decisão possa levar a essas reflexões e que essa mera decisão do STF não conseguirá mudar”, afirmou.

Para ela, a decisão deve ser acompanhada de reformas mais amplas para garantir que o combate ao tráfico seja mais eficiente e menos baseado na repressão a usuários.

Impacto sobre espécies de maconha

O advogado e doutor em direito penal pela USP, Cristiano Maronna, reforçou que a decisão do STF estabelece uma nova lógica na diferenciação entre usuários e traficantes.

“Toda pessoa flagrada com drogas é presumida como usuária e somente quando houver provas disso, ela será enquadrada como traficante. Mesmo em caso de quantidades superiores, é possível que se caracterize uso pessoal”, explicou.

Ele destacou que o enquadramento de tráfico exige corroboração externa e que essa questão está diretamente ligada ao uso de câmeras corporais por agentes de segurança. “É preciso de corroboração externa para o enquadramento de tráfico. Isso está relacionado ao uso de câmeras corporais. Isso deve ser visto como central no debate”, afirmou.

Maronna também criticou a exclusão de substâncias derivadas da maconha da decisão do STF.

“Skunk e haxixe são maconha. O Supremo errou aqui. Maconha é o gênero aqui, e skunk e haxixe são espécies que devem ser abrangidos pela decisão”, afirmou.

Para ele, ao restringir a interpretação apenas à maconha em sua forma tradicional, o STF deixou uma brecha que pode gerar novas controvérsias jurídicas e reforçar arbitrariedades na aplicação da lei.


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