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por Stella Galvão
Era um cavalo que vivia placidamente na planície, trotando nas estradas de terra, subindo e baixando com verduras de uma horta de cooperativa. Um completo anônimo. Só o moço que lhe dava umas varadas no dorso para apressar a marcha sabia de sua existência. Concretamente existia como elemento necessário àquela exploração agrícola de recursos escassos. Os dias passavam lentos e monótonos. Ele não reclamava. Tinha um teto e capim fresco à farta, por vezes uns pedaços de cenoura.
Até que as águas avançaram e ele se viu imerso num mar de imagens que se replicavam com a ligeireza de uma patada mais brusca no solo carcomido por onde transitava. A coisa toda foi uma sucessão de surpresas. Ele, que já havia atravessado riachos de profundidade razoável carregando a carga e o moço, viu-se empurrado pela correnteza. Estava à deriva quando repentinamente avistou a parte visível de uma casa – o topo do telhado. Ali se encarapitou julgando-se a salvo. Até que um humano o fotografou e o transportou à fama instantânea, inclusive internacional.
Ele ganhou um apelido – Caramelo, como os cachorros vira-latas dóceis e brincalhões, de pelo amarronzado. Não gostou daquela novidade. Nem mesmo gostava do labrador caramelo que reinava na casa do moço, barulhento e espaçoso. Também soube que recebeu um passaporte para o livre compartilhamento de sua imagem, a hashtag #SalvemOCavaloDeCanoas. O resgate teve transmissão ao vivo por TV’s e canais de gente dita influente.
Houve um princípio de debate em torno do gênero daquele equino. Seria menina, assanharam-se uns, é menino, rebateram hordas de outros, apontando para sinais inequívocos da garanhice pós-hipotermia do animal. Enfim refeito e alimentado, passou a ser disputado por flashes qual BBB recém-saído do confinamento. Memes vários o mostravam dando entrevista a programas de TV, inclusive no previsível café da manhã com o louro José e sua parceira. Sua imagem migrou para camisetas oportunistas que pediam dinheiro para o RS. Vídeos de forte comoção encheram as redes digitais.
Ele tudo via e ouvia entre um relincho e outro de satisfação. Estava a salvo e mais paparicado que nunca. Alguém o viu esboçar uma reação quase humana quando lhe comunicaram o desaparecimento do moço. Caramelo teve um flash de alívio mas logo se recompôs, temendo a cobrança moral dos circunstantes. A gauchada de extrema-direita o alçou em imagens a uma santa criatura, indicador de novos dias de valores xyz bláblá. Para coroar a semana deste agora altaneiro quadrúpede, muita gente recebeu votos de bom sábado ilustrados por Caramelo singrando o lodaçal em uma canoa. Intimamente desejava paz, sossego e grama, reelaborando a famosa frase do rei britânico Ricardo III (retratado por Shakespeare em peça homônima): “meu reino por um cavalo”.
*Stella Galvão é jornalista, cronista e colaboradora do blogdobarbosa
Foto reproduzida da Internet
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