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Baú de um Repórter

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Coletânea de Causos

Que causos são esses, Barbosa?

Incentivado por amigos resolvi escrever também causos particulares vivenciados ao longo dos anos. Alguns relatos são hilários, e dignos de levar ao programa Que História é Essa, Porchat. Seguem os causos em forma de coletânea.

Baú de Estrela

Um caramelo no topo

por Stella Galvão

Era um cavalo que vivia placidamente na planície, trotando nas estradas de terra, subindo e baixando com verduras de uma horta de cooperativa. Um completo anônimo. Só o moço que lhe dava umas varadas no dorso para apressar a marcha sabia de sua existência. Concretamente existia como elemento necessário àquela exploração agrícola de recursos escassos. Os dias passavam lentos e monótonos. Ele não reclamava. Tinha um teto e capim fresco à farta, por vezes uns pedaços de cenoura.

Até que as águas avançaram e ele se viu imerso num mar de imagens que se replicavam com a ligeireza de uma patada mais brusca no solo carcomido por onde transitava. A coisa toda foi uma sucessão de surpresas. Ele, que já havia atravessado riachos de profundidade razoável carregando a carga e o moço, viu-se empurrado pela correnteza. Estava à deriva quando repentinamente avistou a parte visível de uma casa – o topo do telhado. Ali se encarapitou julgando-se a salvo. Até que um humano o fotografou e o transportou à fama instantânea, inclusive internacional.

Ele ganhou um apelido – Caramelo, como os cachorros vira-latas dóceis e brincalhões, de pelo amarronzado. Não gostou daquela novidade. Nem mesmo gostava do labrador caramelo que reinava na casa do moço, barulhento e espaçoso. Também soube que recebeu um passaporte para o livre compartilhamento de sua imagem, a hashtag #SalvemOCavaloDeCanoas. O resgate teve transmissão ao vivo por TV’s e canais de gente dita influente.

Houve um princípio de debate em torno do gênero daquele equino. Seria menina, assanharam-se uns, é menino, rebateram hordas de outros, apontando para sinais inequívocos da garanhice pós-hipotermia do animal. Enfim refeito e alimentado, passou a ser disputado por flashes qual BBB recém-saído do confinamento. Memes vários o mostravam dando entrevista a programas de TV, inclusive no previsível café da manhã com o louro José e sua parceira. Sua imagem migrou para camisetas oportunistas que pediam dinheiro para o RS. Vídeos de forte comoção encheram as redes digitais.

Ele tudo via e ouvia entre um relincho e outro de satisfação. Estava a salvo e mais paparicado que nunca. Alguém o viu esboçar uma reação quase humana quando lhe comunicaram o desaparecimento do moço. Caramelo teve um flash de alívio mas logo se recompôs, temendo a cobrança moral dos circunstantes. A gauchada de extrema-direita o alçou em imagens a uma santa criatura, indicador de novos dias de valores xyz bláblá. Para coroar a semana deste agora altaneiro quadrúpede, muita gente recebeu votos de bom sábado ilustrados por Caramelo singrando o lodaçal em uma canoa. Intimamente desejava paz, sossego e grama, reelaborando a famosa frase do rei britânico Ricardo III (retratado por Shakespeare em peça homônima): “meu reino por um cavalo”.

*Stella Galvão é jornalista, cronista e colaboradora do blogdobarbosa

Foto reproduzida da Internet

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