Artigo

A fila anda

O Blog transcreve um artigo do jornalista Valemar Menezes, colunista do jornal O Povo, sob o sugestivo título de “A fila anda”, para brindar os leitores com um texto lúcido e sábio que retrata a realidade da atual conjuntura política nacional.

por Valdemar Menezes, em O Povo

Ecoaram durante toda a semana o artigo “Por um grande pacto republicano no Brasil”, publicado no El País pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, bem como uma entrevista sua a correspondentes estrangeiros nos quais reconhece o excessivo protagonismo do poder Judiciário no sistema político brasileiro, nos últimos anos, propondo agora, em seu lugar, um pacto para que “a política volte a liderar o desenvolvimento do país”. Nele, os três poderes se congregariam para a aprovação das reformas tributária e da Previdência e dariam como normalizados o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, o impedimento da candidatura Lula e o seu processo e condenação, bem como, supostamente, a “fake-newzação” da eleição. Não é uma beleza?

Esqueçam-se as tropelias do sistema de justiça, desde a esdrúxula aplicação da Teoria do Domínio do Fato, no julgamento do Mensalão; o contorcionismo do devido processo legal e a abertura das comportas do estado de exceção, apontados por muitos juristas. O mesmo se diga da tutela militar que se abate sobre o País. É a sina do Brasil desde o golpe de 15 de novembro de 1889, enquanto brincamos de democracia. A sua fase mais duradoura foi de 1964-1985. Terminada a ditadura, passou a atuar “por trás das cortinas”. O fracasso das Diretas Já, a anistia prévia aos torturadores (sem serem identificados e julgados); a obstrução da Comissão da Verdade; a Assembleia Constituinte Congressual, em lugar da Soberana e Exclusiva; a falta de autocrítica dos militares e dos segmentos civis por terem ilegitimamente, derrubado o Estado Democrático de Direito, em 1964; a redação dúbia do artigo da Constituição que trata da intervenção militar – tudo isso permitiu que se chegasse ao atual retrocesso e à instauração de um governo composto com forças sem o menor compromisso com a defesa do patrimônio e da soberania nacionais e dos direitos sociais dos trabalhadores.

Claro, se o julgamento do Mensalão, por exemplo, tivesse transcorrido dentro dos cânones consagrados pelo Direito; se a Lava Jato tivesse mantido a isenção e não tivesse se transformado num projeto de poder (agora triunfante) e nem se tivesse deixado envolver por um projeto de uma potência estrangeira concorrente; se o impeachment fajuto da Dilma tivesse sido questionado pelo STF; se o reitor Cancelier estivesse vivo, sem precisar matar-se para provar sua inocência; se não tivesse havido o PowerPoint do Dallagnol, a gravação ilegal e a condução coercitiva do Lula (bem como o impedimento ilegal da execução do habeas-corpus concedido a ele por um desembargador do TRF-4, na plenitude do cargo), nem a negação da liminar da ONU, não haveria essa divisão no País – todos estariam aplaudindo – da esquerda à direita – Barbosa, Moro, delegada Macarena e os rapazes da Lava Jato. A correção dos procedimentos e sua constitucionalidade bastariam, por si sós, para calar qualquer voz.

Mas, todos sabem que isso não foi respeitado e instaurou-se a guerra da selva, cuja anistia Dias Toffoli propõe agora desde que – mais uma vez – só beneficie um lado: o que já obteve tudo e se diverte com a proposta do ministro, depois de uma eleição presidencial desvirtuada pela retirada do principal candidato das pesquisas, além da deturpação de uma campanha marcada pelo financiamento ilegal da candidatura vencedora através de uma emissão avassaladora de fake news.

Da minha parte, cheguei aos meus limites. Já não tenho energia física e emocional, nem idade e saúde para escalar essa nova muralha de estupidez, como o fiz após 1964. Ninguém é imprescindível, e cada um deve ter noção dos próprios limites. Vou sair de férias e, na volta, não redigirei mais esta coluna. A direção do jornal aceitou muito respeitosamente minha decisão. Quero agradecê-la, não só por isso, mas por ter aceitado essa minha participação por cerca de duas décadas, sem nunca ter impedido que eu manifestasse livremente minhas opiniões. A marca deste jornal é ser o estuário da pluralidade de pensamentos existentes no seio da sociedade – da direita à esquerda – em face de seu compromisso fundante com a democracia e o debate democrático.

Expresso também minha gratidão aos leitores que me acompanharam durante esse tempo e aos que exerceram um contraditório respeitoso. A todo o público desejo boas festas e forças retemperadas para os próximos desafios. Não poderia deixar de me referir a Lula, lá nas masmorras de Curitiba. Sempre prenderam e mataram os profetas. O Brasil e o mundo não se esquecerão disso, quando estes tempos obscuros e mesquinhos tiverem passado. Por agora, é preciso impedir que ele morra cruelmente na prisão.

*Valdemar Menezes é jornalista e escreve para o jornal O Povo

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