Baú de Estrela

Baú de Estrela

Stella12131Baile de máscaras

por Stella Galvão

Um dos melhores dramaturgos que o Brasil produziu, Nelson Rodrigues sentenciou: ‘Só o rosto é indecente. Do pescoço para baixo, podia-se andar nu’. A frase lapidar do cronista da vida como ela é se arranjava como luva encomendada ao surto epidêmico carnavalesco do ano da graça de 2014. Era ano de Copa do Mundo de Futebol, e sediada no celebrado ‘país do carnaval’, e logo se avizinhava mais um pleito para eleger presidente da República ao sul do Equador e uma miríade de outros cargos executivos e legislativos igualmente onerosos.

Um ano particularmente exposto às vicissitudes e às diatribes. Urgia circular fantasiado ou não, osculando aqui e ali, pulando muros simbólicos ou concretos, caindo na esbórnia. A oposição logo tratou de plantar uma notícia das mais insidiosas nos meios online, essas fontes de informação não confirmada mas que bombeia livre, qual fluxo sanguíneo em recém libertado dos coágulos.

Soube-se que Natal, como outras localidades de grande disputa e passionalismo político, abrigava um vírus de consequências funestas para os foliões, os futuros titulares das seleções transnacionais e ainda para os cabo-eleitorais mais empenhados em burlar a legislação em meio ao populacho ansioso por doações de tijolos, cestas básicas e outros itens particularizados como dentaduras e implantes mamários.

Era assim que o carnaval, considerado uma das festas populares mais animadas e representativas do mundo, havia se colado à bandeira brasileira. Tudo teria começado, na verdade, na terra dos portugas, com o estranho nome de entrudo, que consistia na mimosa troca de nuvens de farinha e outros itens de cozinha como ovos e a boa e velha água de pote ou bica dos tempos de El Rey. Pré-Páscoa, seu sentido estava, como hoje segue petrificado, ligado ao extravasamento, antes que o peso do olhar do todo poderoso descesse sobre a Sodoma e Gomorra carnavalesca.

Na Grande Natal, soube-se que a proximidade das aglomerações forçou o cabo Josias, claustrofóbico, a deserdar. O soldado Joseclayton escafedeu-se para a lagoa de Extremoz por não suportar a ideia de interromper o fluxo de ar entre seus orifícios nasais e o meio externo. A segunda-feira pós carnaval atemporal seria pródiga em papeis com timbre de doutores atestando o estado gravemente infeccioso da dupla que deveria zelar pela segurança dos foliões.

No lugar disso, foram cuidar de se expor a vírus menos danosos. Indiferentes a esses pormenores, os pulantes só paravam de tirar os pezinhos do chão, obedecendo ao comando do microfone, quando soava o gongo de fim da farra de um abadá. Nessa trilha feita de corpos suados, latas de cervejas e muito riso, oh, quanta alegria, as inocentes máscaras cirúrgicas eram nada mais que um acessório pendurado no pescoço. Volta e meia, obedecendo ao comando dos câmeras de TV, elas subiam ou desciam ao sabor das circunstâncias.

No palanque das autoridades excessivamente ornamentadas, não se via sinal de burca a burlar o assédio viral. É claro, quem se arriscaria a salgar o mel dos foliões em pré-ano eleitoral? Nem insanos de plantão, ainda mais já acompanhados do bloco marqueteiro.

Para horror do povo da saúde, em pânico com a iminência de uma epidemia e o risco de plantões redobrados, os tolos locutores das TVs locais abordavam pseudo-celebridades com a pergunta padrão: Já beijou? Em resposta, muitas gargalhadas anunciavam a inevitável troca de fluidos bucais, fértil campo para disseminação de microorganismos, essas criaturas ínfimas novamente guindadas à fama por obra de um conjunto de letras e números. De longe, ainda que disperso entre as dobras das indumentárias dos reis magos eternamente acesos, ele parecia inofensivo. Como os melhores e mais desejados vícios e gostos inconfessos.

No meio da turba contente por protagonizar alegrias pré-fabricadas em dose dupla ano após ano, o verdadeiro mascarado era um cidadão insuspeito, destes que não rompem cordões nem se embriagam até o coma. No passado, talvez. Hoje um homem de família, embora uma família esgarçada, ele se distraia em engabelar uma senhora já um tanto quanto exaurida e prestes a dormitar por décadas. O que o animava era a possibilidade da queda da bastilha, o pobre anacrônico, séculos depois do verdadeiro acontecimento na França pré-revolucionária.

É verdade que a lua se insurgia, radiosa, por sobre o cenário mimoso. Que dali a algumas horas nada mais restaria além de toneladas de lixo, resíduos humanos pós sessões explícitas de esfregaço e uma certa melancolia que se instala após uma explosão de pulsões. Este carnaval seria mesmo inesquecível: que gênio do marketing teria instilado o medo e o desejo de desafiá-lo para reunir mais gente? Presa ao álcool iodado e às ataduras à guisa de proteção bucal, a turba se movia em meio às ferragens enferrujadas da velha política torpe, viralmente contagiada.

* Stella Galvão é jornalista e colaboradora do blog, professora da Escola de Comunicação e Artes da UnP, mestre pela PUC-SP e autora de ‘Calos e Afetos’ e ‘Entreatos’. Endereço no twitter @stellag19, e-mail: stellag@uol.com.br

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