Baú de Estrela

Carnaval sem confetes

por Stella Galvão

Tanto assunto palpitando ao redor da cabeça deu zunido, nestes dias de carnaval e guerra. Como temos que sobreviver enquanto há planeta, pensei em sugerir coisas simplinhas [o fundo aconchegante de uma rede, suco de fruta bem gelado, tapioca com coco, música, textos literários, cineminha] para enfrentar o noticiário árido e as pequenas diatribes e beligerâncias. Sim, porque de guerra e de prenúncio se fazem os dias, desde o mau humor matutino do casalzinho amoroso na véspera, até os misseis continuamente disparados hoje pelos russos, amanhã pelos ianques, eventualmente por
humanos que hostilizam e matam uns aos outros. Como nos lembra continuamente o poeta Augusto dos Anjos em Versos íntimos, o beijo, amigo, é a véspera do escarro, a mão que afaga é a mesma que apedreja.

Recomenda-se fortemente nestes tempos revoltos ouvir, a qualquer hora e lugar, a nova canção de Marisa Monte em parceria com o músico uruguaio Jorge Drexler, “Vento sardo”. A letra fala, em português e espanhol, sobre a natureza do vento e este refazer contínuo ao largo da caminhada. Hay tiempos de andar contra el viento / Cuando el contratiempo comienza a soplar / Então o vento que é de aragem / Bate no varal pra me dar coragem.
Sobre o tema da guerra que acompanha a trajetória humana, é de uma carioca imortalizada pela defesa da liberdade de amar, a atriz Leila Diniz, a autoria de um belíssimo poema resgatado pelo mineiro Milton Nascimento numa faixa do álbum Sentinela, de 1980. É a própria Leila quem lê o poema na gravação, enchendo de poesia a canção. Ela escreveu:

Brigam Espanha e Holanda
Pelos direitos do mar
O mar é das gaivotas
Que nele sabem voar
O mar é das gaivotas
E de quem sabe navegar.
Brigam Espanha e Holanda
Pelos direitos do mar
Brigam Espanha e Holanda
Porque não sabem que o mar
É de quem o sabe amar.

E foi na época do movimento peace and love [início dos anos 1970, com americanos matando norte-vietnamitas aos montes] que o compositor carioca João Kelly e seu parceiro compuseram a singela marchinha de carnaval que pedia “Paz e amor”. A cançoneta, mais desconhecida que lembrada nas décadas seguintes, foi gravada pelo carnavalesco fluminense Clovis Bornay. Nos comentários do vídeo, lemos que um pequeno destaque foi conseguido pela marchinha graças a seu intérprete, que perambulou feito um condenado de rádio em rádio, pedindo para alguém tocá-la. Por
um pouco de paz e amor, clamava Bornay. O eco se perdeu, ficou a letra reduzida a suas frases principais: Paz e amor, guerra não senhor, todo mundo é meu amigo, todo mundo é meu irmão, Quem quiser falar comigo, levanta dois dedos da mão.

Enfim, é carnaval sem festa pelo segundo ano consecutivo por obra de investidas virais agora arrefecidas por zilhões de picadas vacinais pelo mundo. E há uma guerra no leste europeu que forçou até mesmo uma ex-bbb a transformar-se em comentadora política. A moça, que notabilizou-se por referências bíblicas e exortações a boas ações em favor do próximo, não gostou de ser criticada. Abriu uma guerrinha contra os seguidores que
a contrariaram. Onde a boa vontade, à crença de que todo mundo é irmão, como prega a marchinha Paz e amor? Talvez no restaurante que sobrevive em Ipanema, Rio, numa das esquinas da famosa rua Nascimento Silva, imortalizada por Vinicius de Moraes em Carta ao Tom: É, meu amigo, só resta uma certeza. É preciso acabar com essa tristeza. É preciso inventar de novo o amor.

Foto ilustrativa

*Stella Galvão é jornalista, cronista e colaboradora do blogdobarbosa

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