Artigo

Golpe e (muita) grana: as articulações sinistras do entorno de Bolsonaro

Epor Henrique Rodrigues e Iara Vidal, na Fórum

Quando a Polícia Federal (PF) deflagrou a operação Venire em 3 de maio, fazendo busca e apreensão na casa de Jair Bolsonaro e levando à cadeia seus auxiliares mais próximos, como o ex-ajudante de ordens tenente-coronel Mauro Cesar Cid, veio à tona um esquema de falsificação de cartões de vacinação que já pareceu grave o suficiente para justificar as prisões e até mesmo ensejar o encarceramento do ex-presidente.

A partir da apreensão do celular de Mauro Cid, entretanto, o que se descobriu foi uma trama criminosa ainda maior que envolve desde conspirações por um golpe de Estado contra a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva até repasses de valores financeiros ao exterior e suposta lavagem de dinheiro.

As investigações da PF apontam para uma articulação golpista entre militares que tinham forte trânsito no Palácio do Planalto durante o governo Bolsonaro aliada a um suposto esquema de corrupção que poderia servir, entre outras coisas, até mesmo para subsidiar financeiramente uma possível fuga de Bolsonaro do Brasil caso fosse emitida contra ele uma eventual ordem de prisão.

O plano de golpe: primeiros áudios

Na operação contra o esquema de fraudes em cartões de vacina, além da busca e apreensão na casa de Bolsonaro e prisão de Mauro Cid, a PF prendeu Luis Marcos dos Reis, sargento do Exército que integrava a equipe do ajudante de ordens dedo ex-chefe do Executivo; Ailton Gonçalves Moraes Barros, ex-major do Exército, que também atuava no círculo de auxiliares do ex-presidente; Max Guilherme, ex-sargento do Bope (Batalhão de Operações Especiais) do Rio de Janeiro, que atuava como segurança e, depois, como assessor especial do ex-mandatário; Sérgio Rocha Cordeiro, capitão da reserva do Exército e ex-assessor da Presidência; e João Carlos de Sousa Brecha, secretário de governo da prefeitura de Duque de Caxias (RJ).

Após as prisões, os investigadores periciaram os celulares dos alvos e descobriram, no aparelho de Mauro Cid, um dos auxiliares mais íntimos de Bolsonaro, áudios enviados por Ailton Barros, definido pelo próprio ex–presidente como seu “segundo irmão”, nos quais é tramado um golpe de Estado.

A conspiração, de acordo com a PF, teria se desenrolado na antessala do gabinete da Presidência da República, local em que Mauro Cid e Barros atuavam como ajudantes do ex-presidente.

Essas mensagens foram trocadas em dezembro de 2022, quando Bolsonaro ainda estava no Brasil, com seu silêncio e gestos enigmáticos, alimentando as esperanças dos bolsonaristas que estavam acampados em Brasília por um golpe que impedisse o presidente Lula de tomar posse.

Em um desses áudios, Ailton Barros afirma que o golpe precisaria da participação do então comandante do Exército, general Freire Gomes, ou do próprio Bolsonaro. Ele diz, ainda,  que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes deveria ser preso.

Em 15 de dezembro, Barros disse a Mauro Cid:

“É o seguinte, entre hoje e amanhã, sexta-feira, tem que continuar pressionando o Freire Gomes [então comandante do Exército] para que ele faça o que tem que fazer […] Até amanhã à tarde, ele aderindo… bem, ele faça um pronunciamento, então, se posicionando dessa maneira, para defesa do povo brasileiro. E, se ele não aderir, quem tem que fazer esse pronunciamento é o Bolsonaro, para levantar a moral da tropa. Que você viu, né? Eu não preciso falar. Está abalada em todo o Brasil.”

Em outra gravação, Ailton Barros, o “segundo irmão de Bolsonaro”, que inclusive foi votar com o ex-presidente no dia do segundo turno da eleição de 2022,  ressalta a necessidade do então comandante do Exército ou do ex-presidente realizarem o pronunciamento anunciando o golpe de Estado, “de preferência, o Freire Gomes. Aí, vai ser tudo dentro das quatro linhas”.

O ex-militar prossegue afirmando que seria necessário ter, até o dia seguinte, 16 de dezembro, pela tarde, “todos os atos, todos os decretos da ordem de operações” prontos.

“Pô [sic], não é difícil. O outro lado tem a caneta, nós temos a caneta e a força. Braço forte, mão amiga. Qual é o problema, entendeu? Quem está jogando fora das quatro linhas? Somos nós? Não somos nós. Então nós vamos ficar dentro das quatro linhas a tal ponto ou linha? Mas agora nós estamos o quê? Fadados a nem mais lançar. Vamos dar de passagem perdida?”, indaga.

E emenda:

“Se for preciso, vai ser fora das quatro linhas. Nos decretos e nas portarias que tiverem que ser assinadas, tem que ser dada a missão ao comandante da brigada de operações especiais de Goiânia de prender o Alexandre de Moraes no domingo, na casa dele”.

A sugestão de Barros a Mauro Cid seria que, no dia 19 de dezembro, fossem lidas as portarias, decretos de garantia da Lei e da Ordem e “botar [sic] as Forças Armadas, cujo Comandante Supremo é o presidente da República, pra agir”.

Além dos áudios, a partir da quebra de sigilo telemático, a PF encontrou o elo direto entre Ailton Barros e o levante golpista do dia 8 de janeiro. Segundo as investigações, o amigo íntimo de Bolsonaro mobilizou bolsonaristas para a invasão e depredação das sedes dos Três Poderes.

Mais áudios golpistas: Élcio Franco entra em cena

Com o avanço das investigações, a Polícia Federal chegou a outro nome de confiança de Jair Bolsonaro e seus ministros que está envolvido na trama golpista: o coronel reformado do Exército Élcio Franco.

Franco se tornou conhecido entre a população brasileira a partir da CPI da Covid no Senado. À época da pandemia, ele era o “número 2” do Ministério da Saúde e foi alvo de pedido de indiciamento por improbidade administrativa e, supostamente, ter contribuído para o desastre que foi a gestão da crise sanitária sob o governo Bolsonaro.

Em mensagens de áudio trocadas com Ailton Barros, captadas pela PF a partir da investigação contra Mauro Cid, o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Franco sugeriu, também em dezembro de 2022, mobilizar 1.500 homens das Forças Armadas para deflagrar um golpe de Estado.

Naquele período, ele era assessor do Ministério da Casa Civil, que estava sob o comando de Ciro Nogueira. Antes, a pasta era comandada pelo general Walter Braga Netto, que depois foi para o Ministério da Defesa e se candidatou como vice de Bolsonaro na eleição de outubro.

Élcio Franco atuava ainda como conselheiro de Braga Netto e era considerado o “braço direito” do general. Nas mensagens golpistas, o ex-assessor fala explicitamente sobre seu desejo por uma ruptura institucional com o uso da força.

Em uma das gravações, Franco sugere a Barros até mesmo passar por cima de qualquer ordem do comandante do Exército, Freire Gomes, já que o militar teria, segundo ele, temor das consequências de um golpe. A intentona contra a democracia seria liderada, portanto, pelo comandante de operações terrestres do Exército, Coronel Virgílio

“Olha, eu entendo o seguinte: é Virgílio. Essa enrolação vai continuar acontecendo (…) O Freire [comandante do Exército] não vai. Você não vai esperar dele que ele tome à frente nesse assunto, mas ele não pode impedir de receber a ordem. Ele vai dizer, morrer de pé junto, porque ele tá mostrando. Ele tá com medo das consequências, pô. Medo das consequências é o que? Ele ter insuflado? Qual foi a sua assessoria? Ele tá indo pra pior hipótese. E qual, qual é a pior hipótese?”.

Élcio Franco, então prossegue:

 “‘Ah, deu tudo errado, o presidente foi preso e ele tá sendo chamado a responder’. Eu falei ó, eu , durante o tempo todo [ininteligível] contra o presidente, pô, falei que não, não deveria fazer, que não deveria fazer, que não deveria fazer e pronto. Vai pro Tribunal de Nurenberg desse jeito. Depois que ele me deu a ordem por escrito, eu comandante, da Força, tive que cumprir’. Essa é a defesa dele, entendeu? Então, sinceramente, é dessa forma que tem que ser visto.”

Ailton Barros, por sua vez, responde, dando a entender que Elcio Franco já estava ciente do planejamento da operação golpista: 

“[É preciso convencer] o general Pimentel. Esse alto comando de m… que não quer fazer as p…, é preciso convencer o comandante da Brigada de Operações Especiais de Goiânia a prender o Alexandre de Moraes. Vamos organizar, desenvolver, instruir e equipar 1.500 homens.”

E o Braga Netto?

Após as prisões dos auxiliares de Bolsonaro no âmbito da operação que apura fraudes em cartões de vacina, a PF avançou nas investigações e mira, agora, o ex-ministro da Defesa e Casa Civil do último governo, general Walter Braga Netto.

Isso porque Braga Netto, que foi candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro no último pleito eleitoral, tinha como conselheiro e “braço direito” o coronel Élcio Franco – flagrado nas conversas de teor golpistas com Ailton Barros, que teve o mesmo tipo de diálogo com Mauro Cid.

Diante da proximidade entre Cid, Franco e Braga Netto, a PF agora se debruça em encontrar qualquer tipo de envolvimento do general e ex-ministro nessas articulações por um golpe de Estado.

Até o momento, Braga Netto não se pronunciou sobre os diálogos golpistas de seu ex-assessor. Em entrevista ao jornal O Tempo no dia 9 de maio, o ex-ministro saiu em defesa de Bolsonaro e disse que não houve tentativa de golpe.

“Não houve tentativa de golpe. Nem se pensou em golpe. Eu nunca ouvi, na época em que eu estava dentro do Palácio ou depois, nada que fosse contra o que está previsto na Constituição e na lei”, declarou.

Em novembro de 2022, pouco antes dos primeiros registros da conspiração por um golpe de Estado que foi travada por auxiliares próximos de Bolsonaro, Braga Netto compareceu a uma movimentação golpista formado por apoiadores do ex-presidente que não aceitavam o resultado das eleições e disse para que eles não “perdessem a fé”.

Não é só golpe, é grana (e muita)

Além de liderar um esquema criminoso de falsificação de cartões de vacina e estar envolvido no planejamento de um golpe de Estado, o auxiliar mais íntimo de Jair Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid, é investigado pela PF também por lavagem de dinheiro.

No dia da prisão do militar, policiais encontraram em sua casa na capital federal US $35 mil em espécie – sacados nos EUA dias antes do retorno de Jair Bolsonaro ao Brasil, em março de 2023 –  o que gerou fortes suspeitas de ilegalidades.

Como se não bastasse, veio à tona, poucos dias depois, a partir de reportagem do site Metrópoles,  que a família de Cid mantém um ‘trust’ (Cid Family Trust) nos EUA, detentor até de uma mansão avaliada em R $8,5 milhões na Califórnia. ‘Trust’ é uma espécie de fundo, existente na legislação de alguns países, que se mantém como titular de bens e propriedades, sem precisar que uma pessoa física apareça como dona daquele patrimônio, dando isenções fiscais e “privacidade” aos reais proprietários.

A mansão cinematográfica, localizada em Temecula, a 130 quilômetros de Los Angeles, foi comprada por US $1,7 milhão pelo irmão do tenente-coronel Mauro, Daniel Cid. Eles são filhos do general de exército da reserva Mauro Cesar Cid, homônimo do filho militar, exceto pelo sobrenome Barbosa. Há ainda registros de outros imóveis adquiridos e negociados pela ‘trust’ da família Cid, como duas casas também em Temeluca, avaliadas em R $2,2 e R $3,3 milhões, esta última vendida há pouco tempo. O irmão de Mauro Cid tem ainda um imóvel no condomínio Doral Isles Martinique, em Miami, na Flórida, estimado em R $2 milhões, mas que foi registrado nominalmente e não na ‘trust’.

Profissional da área de tecnologia, com atuação em segurança digital, Daniel está na mira da PF por conta da página “brasileiros.social”, um domínio criado por ele e registrado em servidores do exterior, com conteúdo de extrema direita e bolsonarista, onde há uma miscelânea de publicações negacionistas e teorias da conspiração contra o sistema eleitoral brasileiro. Foi lá que surgiu também uma cópia de um inquérito sob sigilo de Justiça que investigava uma imaginária fraude em eleições, muito usado como “exemplo” por Bolsonaro e anunciado numa live golpista na qual o irmão de Daniel, o tenente-coronel Mauro Cid, apareceu junto ao então chefe de Estado, em agosto de 2020.

Daniel Cid fez um verdadeiro malabarismo empresarial em território norte-americano. Estabelecido em 2018 com sua empresa na Califórnia, ele a passou para o estado de Delaware, um notório paraíso fiscal dentro dos EUA, ainda que tenha instalado o escritório da companhia no Texas.

Grana no Palácio do Planalto

Como se não bastassem os dólares em espécie encontrados na casa de Mauro Cid e os negócios suspeitos de sua família nos EUA, a PF descobriu ainda um estranho depósito recebido por ele no valor de R $400 mil.

Esta transferência foi detectada em outra investigação, a partir de quebra de sigilo bancário, que pesa contra o tenente-coronel: a de que ele poderia estar “bancando” gastos da família Bolsonaro.

De acordo com a PF, os R$ 400 mil foram depositados na conta de Cid em 25 de março de 2022 por João Norberto Ribeiro, tio de sua esposa, Gabriela Cid.

João Noberto é sócio de Gilberto Santiago Ribeiro, irmão de Gabriela, a esposa do ajudante de ordens de Bolsonaro.

A apuração da PF aponta que Gabriela usou os dados de Gilberto para falsificar um cartão de vacina em dezembro de 2021. Naquele mês, ela embarcou para os Estados Unidos. dezembro de 2021. No mesmo dia, Gabriela Cid embarcou em viagem para os Estados Unidos.

A principal suspeita dos investigadores é que Mauro Cid transferia este tipo de depósito, que seria uma prática constante, para outros servidores ligados ao Palácio do Planalto e, diretamente, à presidência. Em tese, esses funcionários sacariam esse dinheiro para repassar em espécie a contatos de Michelle Bolsonaro, por ordem da própria primeira-dama.

“Os elementos trazidos aos autos revelam fortes indícios de desvio de dinheiro público, por meio da Ajudância de Ordens da Presidência, destinado originalmente ao atendimento de despesas da Presidência da República, direcionando valores para pessoas indicadas por Giselle dos Santos Carneiro da Silva e Cintia Borba Nogueira Cortes, assessoras da primeira-dama Michelle Bolsonaro”, diz um trecho do relatório da PF no âmbito desta investigação.

Situação de Mauro Cid faz advogado abandonar defesa; delação à vista

O advogado Rodrigo Roca, que estava responsável pela defesa de Mauro Cid, anunciou no dia 10 de maio que deixou a função. A informação caiu como uma bomba entre bolsonaristas, já que Roca disse claramente desde que assumiu o caso que “não aceitaria advogar para clientes que façam delação”. Ele também abandonou, meses atrás, a defesa do ex-ministro Anderson Torres, apontado como um dos articuladores da tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro.

Diante da notícia, a expectativa generalizada, entre aliados e opositores do bolsonarismo, é de que Cid passe a revelar o envolvimento de Bolsonaro em todos os casos em que é investigado, o que seria um pesadelo para o ex-presidente.

E, de fato, isso está muito próximo de acontecer. Isso porque, com a saída de Roca da defesa de Cid, assumiram os advogados Bernardo Fenelon e Bruno Buonicore.

Mestre em Direito Penal, Fenelon é considerado um especialista em delação premiada, já tendo atuado em casos nos quais participou do estabelecimento deste tipo de acordo, sendo que, em 2022, lançou um livro sobre o tema.

Uma eventual delação de Mauro Cid, visto como o homem que sabe demais do último governo, pode representar a pavimentação do caminho que já começou a ser construído para levar Bolsonaro à cadeia.

Tic Tac…

Foto: Alan Santos/PR


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