Artigo

Manchinha e Beto

por Marcelo Zero, no Viomundo

Manchinha era uma simpática vira-lata que vivia nas imediações de uma loja do Carrefour, em Osasco.

Abandonada pelo dono, Manchinha vivia no Carrefour há muito.

Dócil e sociável, Manchinha era alimentada por clientes e funcionários. Segundo os que a conheciam, não incomodava ninguém.

Parece, no entanto, que essa não era a opinião da gerência do Carrefour, em Osasco.

No dia 28 de novembro de 2018, um segurança do Carrefour, munido de uma barra de ferro, golpeou Manchinha de forma selvagem.

Vomitando sangue, Manchinha foi encaminhada para o Centro de Zoonoses, mas não resistiu. O Carrefour tinha eliminado o animal que ameaçava lucros.

Houve grande comoção.

O assassinato de Manchinha teve forte repercussão nacional. Saiu em toda a mídia e provocou uma onda de protestos contra o Carrefour.

No dia 8 de dezembro de 2018, uma manifestação levou cerca de 2.000 pessoas à loja de Osasco, que teve de fechar as portas durante o ato.

Não ficou só nisso. Houve consequências práticas e jurídicas.

Além de sofrer com boicotes, o Carrefour foi obrigado, pelo Ministério Público de São Paulo a depositar R$ 1 milhão de reais em um fundo criado pelo município de Osasco para a proteção de animais.

Desse modo, a vida da cadela Manchinha foi monetizada em R$ 1 milhão de reais.

Se a vida de um cachorro vale R$ 1 milhão, quanto vale a vida de um homem negro?

A pergunta é pertinente.

Dois anos após o assassinato de Manchinha, João Alberto Silveira Freitas, mais conhecido como Beto, homem negro de 40 anos, foi assassinado, na véspera do Dia Nacional da Consciência Negra, por um segurança e por um PM temporário, fora de serviço, num supermercado Carrefour, na zona norte de Porto Alegre.

Beto foi linchado, aos socos e pontapés, ante a indiferença de testemunhas.

Beto foi assassinado por ter tido um “desentendimento” com uma caixa do supermercado.

Não sei nada sobre Beto. Não sei se ele era “simpático e sociável” como Manchinha. Não sei qual foi o “desentendimento” que provocou a fúria dos seguranças.

Sei, entretanto, que ele era negro. E isso explica tudo.

Sei bem que, se Beto fosse um branco de classe média, a história teria sido bem diferente.

Provavelmente, a caixa teria sido advertida, após o “desentendimento”.  Afinal, clientes (brancos) têm sempre razão, reza a regra dos comerciantes. Com toda certeza, um cliente branco não teria sido linchado.

Sei bem que, nos últimos 10 anos, mais de 650 mil pessoas negras foram assassinadas no Brasil. Conheço o fato aterrador de que os negros são quase 80% dos mortos pela polícia.

Estou consciente de que, a cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil.

No dia em que Beto foi linchado, 62 jovens negros foram assassinados. Esses 62 permaneceram vítimas anônimas do genocídio negro no Brasil.

É certo que autoridades se apressarão a minimizar o linchamento.

Mourão, provavelmente um descendente de escravos, se apressou a declarar que o trágico incidente não tem nada a ver com racismo, pois não existe racismo no Brasil. Isso é coisa “importada”.

Falou isso no Dia da Consciência Negra, linchando a memória de todos os combatentes negros do Brasil. Assassinou a história de Zumbi e Dandara.

Bolsonaro talvez deva estar pensando que Beto pesava muitas arrobas e que não servia mais nem para procriar.

Com certeza, não se comoverá com a história e não manifestará indignação, pesar ou solidariedade à família da vítima. Não faz isso nem com os milhares de brancos que morrem de Covid pela omissão de seu governo, por que haveria de fazê-lo com o Beto?

Para o capitão, vidas não importam. Nem brancas e, muito menos, negras.

Apesar da prisão dos seguranças e da comoção em alguns meios, acho provável que o Carrefour venha a sofrer menos com o linchamento do Beto do que com a morte de Manchinha.

Afinal, vidas negras, no Brasil, não valem nada. Importam menos que as vidas de cachorros.

Em seu discuro de hoje (20/11), Lula afirmou que:

“Sem igualdade étnica e racial, assim como sem igualdade de gênero, não há democracia de verdade, não há cidadania efetiva e não haverá desenvolvimento. Com racismo, não há sequer soberania. Um Brasil racista será sempre pobre, injusto, pequeno e frágil.”

Tem toda razão. Esse Brasil racista, esse país do genocídio contra negras e negros, nunca será um grande país, uma grande democracia, pois a escravidão e racismo estão na origem da nossa abissal desigualdade.

Estão na origem do ódio e do preconceito, que tanto nos debilitam.  Estão na origem da nossa violência cotidiana. Estão na origem da nossa grande tragédia social.

Assim, o Brasil racista será sempre um país injusto, dividido e vira-lata. Um país com uma imensa e feroz mancha de vergonha.

*Marcelo Zero é sociólogo, especialista em Relações Internacionais e membro do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI). É colunista do Brasil Debate

Fotos: Reprodução de redes sociais e arquivo pessoal

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