Artigo

O fantasma do Golpe de 1964

por Helio Gurovitz , em seu Blog

Reescrever a história é um item previsível no manual dos candidatos a autocratas. O exemplo canônico é Stálin, que mandava apagar os adversários que matava das fotografias. Stálin foi a inspiração do escritor britânico George Orwell em 1984e na sátira A revolução dos bichos. Está nele a origem do termo “orwelliano” para qualificar as tentativas de disseminar a mentira oficial como verdade.

Para o linguista americano George Lakoff, um dos analistas mais argutos do discurso político contemporâneo, quando um líder soa orwelliano, abre um flanco, demonstra uma fraqueza que será explorada pelos adversários. Ao afirmar que o presidente Jair Bolsonaro não considera que tenha havido um “golpe militar” no Brasil em 1964, o porta-voz da Presidência abriu esse flanco.

Bolsonaro pode ter dezenas de qualidades, outros tantos defeitos, mas não é historiador. Se tem razão ao apontar erros na leitura padrão na esquerda sobre os eventos daquela época, é um erro maior minimizar o arbítrio. Não há dúvida alguma sobre os fatos: foi golpe, houve censura, tortura, pelo menos 434 mortos e desaparecidos arbitrariamente, fechamento do Congresso, cassação de direitos políticos.

Houve uma ditadura.

Pode-se até debater se tudo isso se justificava diante do terrorismo, da guerrilha e do risco de um golpe de esquerda no Brasil. Nenhum democrata dirá que sim, mas todo democrata genuíno terá de admitir a divergência. O inadmissível é tentar mudar os fatos por meio de palavras e expressões que tentem atenuar o arbítrio. É chamar uma ditadura de qualquer outra coisa que não seja ditadura.

Depois da redemocratização, as Forças Armadas passaram por uma depuração ao lidar com os erros do passado. Vem daí a postura mais profissional e menos política da nova geração de militares. Não houve, contudo, um acerto de contas com a punição dos responsáveis por violações de direitos humanos, como na Argentina ou no Chile.

A Comissão da Verdade, estabelecida no governo Dilma Rousseff, cometeu outro equívoco de enormes proporções ao excluir os militares e ao se omitir sobre os crimes da guerrilha. Se o objetivo era a reconciliação nacional, ignorar um dos lados era o pior caminho.

A reação era previsível. Tornaram-se comuns provocações ou elogios a tiranos sanguinários da América Latina, como Stroessner ou Pinochet. A cúpula militar, é verdade, jamais mordeu essa isca. Bolsonaro e seus partidários sim. Nisso, em nada diferem dos comunistas que vangloriam Stálin, Mao ou, mais recentemente, dos petistas que defendem Maduro.

Tiranos são condenáveis independentemente de coloração ideológica. São condenáveis tão-somente por ser tiranos. Por censurar, torturar, matar adversários arbitrariamente e por tentar impôr uma visão mentirosa e distorcida da história.

As “comemorações devidas” do Golpe de 1964, autorizadas por Bolsonaro, não devem em nenhum momento perder de mente o caráter nefasto da ditadura que assombrou o Brasil por quase 20 anos. Reconhecer a desgraça dos Anos de Chumbo, tanto na política quanto na economia, não significa endossar o terrorismo ou o autoritarismo de esquerda. Significa valorizar a democracia.

Ela foi uma das mais difíceis e custosas conquistas brasileiras. Mas o Brasil aprendeu. Aprendeu que democracia é melhor que ditadura, que liberdade é melhor que tirania, que nenhum inimigo, real ou imaginário, justifica a violação sistemática e arbitrária de direitos humanos, a tortura, a censura e os assassinatos nos porões.

Não fosse a democracia, Bolsonaro não estaria onde está. Seria importante que ele reconhecesse o valor de todos aqueles que lutaram dentro da lei (a gigantesca maioria) para acabar com a ditadura imposta depois do golpe. São eles que lhe garantem o direito a ter sua própria opinião sobre o assunto e a expressá-la livremente. Mas, jamais, o de negar os fatos ou de tentar reescrever a história.

Foto reproduzida da Internet

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