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O lulismo e a unidade da esquerda, por Ion de Andrade

Está no Jornal GGN

Os anos Lula, com sua aprovação de mais de 80% foram época não somente de um consenso nacional, como também de uma unidade orgânica das esquerdas. Não que todos os partidos de esquerda estivessem com Lula, e não estavam. A união das esquerdas seguia portanto, uma lógica diferente da atual, que se dá, sobretudo a partir de um discurso de unidade. Esse discurso tem a virtude de enunciar uma intenção em meio a um cenário fragmentado do campo progressista.

Por que não conseguimos reproduzir essa unidade orgânica hoje quando seria mais necessária? Seria isso um fenômeno possível apenas pelo carisma de Lula? Ou poderíamos identificar elementos capazes de nos dar pistas para a construção, novamente, de uma unidade orgânica das esquerdas?

 Sem querer ser acadêmico ou inquestionável, muito mais para arejar a discussão, poderíamos classificar a esquerda no Brasil em três grandes famílias não estanques.

A primeira delas, a maior e hegemônica, é a esquerda nucleada pelos partidos, construída num esforço nacional de décadas e que se constitui hoje num grande patrimônio para o povo. Em grande medida originada nos movimentos operários de São Paulo dos anos oitenta, que deu nascimento ao PT, mas não só, pois outros agrupamentos partidários se originaram dele, como o PSOL, e portanto compartilham de uma mesma origem, é formada também por uma esquerda mais antiga cujo exemplo maior é o PC do B. Essa esquerda partidária se enraíza no mundo sindical e nos movimentos sociais, porém nesse último com uma tendência de declínio. Do ponto de vista da composição social, essa esquerda hoje está hegemonizada pelos setores médios urbanos mais intelectualizados e costuma entender a luta como um enfrentamento direto institucional com a direita ou o arbítrio, nos Poderes Constituídos, ou nas redes sociais. Ela tem também um papel marcante, dado esse poder de fogo, nas mobilizações de rua e essa massa crítica ajuda a conter os avanços do autoritarismo. A blogosfera constrói uma órbita muito próxima dessa esquerda de onde vem a imensa maioria dos seus leitores. Poderia representar essa família, tal como ela é hoje, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad.

Porém o MST não pertence a essa esquerda urbana e intelectualizada. Esse movimento tem como principal protagonista o trabalhador do campo. Trata-se de uma esquerda popular laica, com laços estreitos com a Igreja Católica, de quem em alguma medida se inspirou em aspectos metodológico do trabalho. Entende a política como uma combinação entre uma sedimentação e uma conscientização do povo de longo prazo e desenvolve também uma atuação prática em defesa dos direitos desses trabalhadores que o Brasil sempre relegou à exclusão social, além de perceber a importância do conhecimento técnico da própria agricultura, com grande sucesso em inúmeros assentamentos. Poderíamos também incluir nessa esquerda popular laica, outros movimentos sociais, como o Movimento Negro, cuja ação também está voltada contra a Exclusão Social e o racismo que persistem no Brasil produzindo massacres quotidianos de jovens negros. O movimento dos índios ou o MTST também poderiam ser agrupados aí, embora cada um seja muito diferente do outro.  João Pedro Stedile e Guilherme Boulos são destacados representantes dessa família e vêm atuando em favor da unidade da esquerda.

A terceira família da esquerda é que estabelece maior proximidade com as pastorais sociais, católicas ou de outras igrejas. Essa esquerda se enraíza em comunidades de baixa renda urbanas ou rurais, acompanha e dá suporte aos vulneráveis, fazendo convergir sua fé religiosa para uma ação que se sobrepõe à da política, ainda que esse não seja o seu propósito direto. Entende sua ação como um trabalho de longo prazo, atribuindo profunda importância aos avanços obtidos na capilaridade, convencida de que essa sedimentação do seu ideário será capaz de fazer avançar a sociedade como um todo. Embora não haja alinhamento partidário nessa esquerda, em sua maioria se identifica com o Partido dos Trabalhadores. Talvez uma figura representativa dessa família possa ser Dom Helder Câmara.

E Lula, onde se localiza nesse espectro? Lula é o personagem que conseguiu estabelecer identidade visceral com todas as esquerdas. É fator de unidade e patrimônio comum de todas. Por que?

Essa é uma questão importante se quisermos alguma vez reproduzir em laboratório esse verdadeiro tesouro que Lula representa para o povo brasileiro.

Lula é um político saído do povo, líder cuja comunicação é ao mesmo tempo cerebral e visceral. Lula infunde confiança sobretudo nos mais pobres, porque com o corpo e não com apenas com a cabeça e a boca comunica e dá verdade ao que diz, por ser quem é.

Ao mesmo tempo, a era Lula se caracterizou por um projeto claro de sociedade, que naquela altura produziu largo consenso. Se tratava de tirar o Brasil das condições de miserabilidade absoluta em que vivia (lembremo-nos que no discurso de posse as ambições eram de assegurar três refeições por dia aos brasileiros) e adentrou, e aí as coisas começaram a azedar com os conservadores, por uma política mais afirmativa no tocante à equidade…

Portanto Lula encarnou ao mesmo tempo uma identidade popular (operante e comunicante) e um projeto de sociedade claro e suficiente para galvanizar aquele Brasil de 2002.

E hoje? Quem é que discursa em favor da unidade das esquerdas, no plano da representação representação dessas diversas famílias que compõem o nosso bloco?

E que projeto temos para galvanizar o Brasil que possa repetir, noutro contexto, o componente que deu ao lulismo profunda adequação frente às necessidades e aspirações sociais?

Diria, em resposta à primeira pergunta que temos hoje um momento cuja hegemonia absoluta na representação da esquerda pertence à família urbana e intelectualizada simbolizada por Fernando Haddad. Portanto, caricaturando um pouco, quando se fala de Unidade das Esquerdas se pensa num agrupamento de partidos, todos eles representativos dos setores médios urbanos…

No que toca à segunda pergunta, diria que apesar da obviedade de que o projeto para a recuperação da democracia passa pela inclusão à cidadania e à contemporaneidade das nossas periferias e zonas rurais, como cansativamente repito, não alcança sentido de gravidade, urgência ou necessidade no segmento hegemônico da esquerda no Brasil de hoje que é a dos setores médios urbanos. A maior iniciativa política dessa esquerda é a luta institucional no parlamento ou no judiciário,advogando em favor dos injustiçados como também nas ruas, contra as ações do governo. Sem querer desmerecer a importância de tudo isso, pois essa ação efetivamente limita o avanço do arbítrio, não seria justo reconhecer nela qualquer conteúdo proativo, ou visionário.

Vislumbro uma esquerda liderada por personagens universais a todas elas e saídos do povo, como Paulo Paim, Fátima Bezerra ou Olívio Dutra. Capazes de se comunicar com a cabeça mas também com as vísceras, como Lula.

Vislumbro uma esquerda visionária capaz de se preocupar com a Reforma da Previdência que ameaça hoje o nosso futuro, mas também com a construção de um projeto claro e adequado ao Brasil de hoje e que seja capaz de galvanizar as maiorias.

Como ele mesmo disse no seu último discurso em liberdade, – Lula é uma ideia. Não querendo ter a resposta final de que ideia é, e tudo isso é uma reflexão, a  nós todos cabe o esforço de entender essa ideia melhor.

Ion de Andrade é médico e professor universitário. É colaborador de uma instituição social ligada à igreja católica no bairro Mãe Luiza em Natal

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