Entrevista

Chomsky resume pano de fundo que levou à guerra: “criminalidade e estupidez do Kremlin, severa provocação dos EUA”

Uma entrevista de Noam Chomsky a David Barsamian, originalmente publicada no Tomdispatch.com em 16.06.22.

“Só existe uma maneira de dar um fim a isto. É a diplomacia”, defende o filósofo, linguista e escritor em entrevista a David Barsamian.

1-David Barsamian: Vamos entrar no mais óbvio pesadelo deste momento, a guerra na Ucrânia e os seus efeitos globais. Porém, primeiro, um pouco do pano de fundo. Comecemos com a garantia dada pelo Presidente George H.W. Bush [o pai] ao líder [soviético] Mikhail Gorbachev de que a OTAN não se moveria “nem uma polegada para o leste” [da fronteira da Alemanha unificada] – e esta promessa foi verificada [confirmada]. Minha pergunta para você é: Gorbachev recebeu isso por escrito?

Noam Chomsky: Ele aceitou um acordo de cavalheiros, o que não é incomum em diplomacia. Um aperto de mãos. Além disso, tê-lo por escrito num papel não teria feito qualquer diferença. Os tratados que estão registrados no papel são rasgados o tempo todo. O que importa é a boa fé. Na verdade, H.W. Bush, o primeiro Bush, honrou explicitamente o acordo. Ele até propôs a instituição de uma parceria de paz que acomodaria os países da Eurásia. A OTAN não seria dissolvida, porém seria marginalizada. Países como o Tajiquistão, por exemplo, poderiam entrar na OTAN sem ser parte dela. E Gorbachev aprovou isso. Isto teria sido um passo para criar aquilo que foi chamado de um lar comum Europeu, sem alianças militares.

Clinton aderiu a isso nos dois primeiros anos do seu mandato. O que os especialistas dizem é que lá por cerca de 1994, Clinton começou a “falar pelos dois lados da sua boca” [falar uma coisa aqui e outra acolá] – como dizem. Para os russos, ele estava dizendo: Não se preocupem, nós incorporaremos vocês dentro da OTAN. Porém, por volta de 1996-97, Clinton disse isso bastante explicitamente para o seu amigo, o Presidente russo Boris Yeltsin – quem o havia ajudado [a Clinton] a vencer as eleições de 1996. Ele disse o seguinte a Yeltsin: Não force demais as coisas com este negócio da OTAN. Nós vamos expandir [a OTAN para o leste], mas eu preciso fazê-lo por causa do voto étnico nos Estados Unidos.

Em 1997, Clinton convidou os países chamados de Visegrad – Hungria, Tchecoslováquia e Romênia – para entrarem na OTAN. Os russos não gostaram disso, mas não fizeram muito espalhafato a respeito disso. Depois, os países bálticos entraram na OTAN, outra vez a mesma coisa ocorreu. Em 2008, o segundo Bush – que era bastante diferente do primeiro – convidou a Geórgia e a Ucrânia para entrarem na OTAN. Todos os diplomatas estadunidenses entendiam muito bem que a Geórgia e a Ucrânia eram linhas vermelhas para a Rússia. Eles [os russos] tolerariam a expansão em outros lugares, porém estes dois fazem parte do seu espaço geoestratégico central e eles [os russos] não tolerariam uma expansão lá. Para continuar com a história, o levante de Maidan ocorreu em 2014, expulsando o presidente pró-russo, e a Ucrânia se moveu para o Ocidente.

Desde 2014, os EUA e a OTAN começaram a despejar armamentos na Ucrânia – armas avançadas, treinamento militar, exercícios militares conjuntos, movimentos para integrar a Ucrânia no comando militar da OTAN. Não há segredo sobre isso. Estava tudo bastante em aberto. Recentemente, o Secretário-Geral da OTAN, Jens Stoltenberg, se gabava disso. Ele disse: Isto é o que nós estávamos fazendo desde 2014. Obviamente, isto é muito consciente e altamente provocativo. Eles [a OTAN] sabiam que estavam usurpando aquilo que todos os líderes russos consideravam como uma jogada intolerável. A França e a Alemanha o vetaram em 2008, porém, sob pressão dos EUA, o assunto foi mantido na pauta. E a OTAN – quer dizer, os EUA – propuseram a aceleração de facto da integração da Ucrânia no comando militar da OTAN.

Em 2019, Volodymyr Zelensky foi eleito com uma maioria massiva – penso que algo como 70% dos votos – sobre uma plataforma de paz, um plano de implementar a paz com a Ucrânia do Leste [o Donbass] e a Rússia para resolver o problema. Ele começou a se mover adiante nisso e, na verdade, tentou ir ao Donbass – a região orientada à Rússia na região leste, para implementar aquilo que foi denominado como o acordo Minsk II. Isto teria significado um tipo de federalização da Ucrânia, com um grau de autonomia para o Donbass – que era o que eles queriam. Algo similar à Suíça ou à Bélgica. Ele foi bloqueado pelas milícias de direita, que ameaçaram assassiná-lo caso ele persistisse neste seu esforço.

Bem, ele é um homem corajoso. Ele poderia ter ido adiante se tivesse algum apoio dos Estados Unidos. Os EUA se recusaram a apoiá-lo. Sem apoio nem coisa alguma, isso significava que ele foi abandonado sozinho e ele teve que recuar. Os EUA foram firmes nesta política de integrar a Ucrânia no comando militar da OTAN passo a passo. Isto foi acelerado ainda mais quando o Presidente Biden foi eleito. Em setembro de 2021, se podia ler isso no website da Casa Branca. Isto não foi reportado; porém, obviamente, os russos o sabiam. Numa declaração conjunta [com a OTAN], Biden anunciou um programa para acelerar o processo de treinamento militar, os exercícios militares e o fornecimento de mais armamentos – como parte daquilo que o seu governo chamou de um “programa melhorado” em preparação à entrada da Ucrânia como membro da OTAN.

Isto se acelerou mais ainda em novembro [de 2021]. Isto ocorreu antes da invasão [russa]. O Secretário de Estado Antony Blinken assinou o que foi denominado como um contrato que, essencialmente, formalizava e ampliava este arranjo. Um porta-voz do Departamento de Estado [dos EUA] reconheceu que, antes da invasão [russa], os EUA se recusaram a discutir sobre qualquer preocupação russa sobre segurança. Tudo isso faz parte do pano de fundo.

Em 24 de fevereiro [de 2021] Putin invadiu [a Ucrânia] – uma invasão criminosa. Estas sérias provocações não constituem uma justificativa para isso. Se Putin fosse um estadista, o que ele teria feito seria algo bastante diferente. Ele teria voltado ao Presidente francês Emmanuel Macron, teria agarrado as suas tentativas de propostas e teria proposto de tentar chegar a uma acomodação com a Europa – para dar passos rumo a um lar comum europeu.

Obviamente, os EUA sempre se opuseram a isso. Isso volta lá atrás, na história da Guerra Fria, às iniciativas do Presidente francês De Gaulle de estabelecer uma Europa independente – na sua frase “do Atlântico aos Urais”, integrando a Rússia com o Ocidente, o que era uma acomodação natural por razões comerciais e, [obviamente, também por razões de segurança. Então, caso houvesse qualquer estadista no círculo próximo de Putin, eles teriam agarrado as iniciativas de Macron e teriam experimentado para ver se, de fato, eles poderiam se integrar com a Europa e evitar a crise. Em lugar disso, o que ele [Putin] escolheu foi uma política que era uma imbecilidade total do ponto de vista russo. Afora a criminalidade da invasão, ele escolheu uma política que levou a Europa bem para o fundo do bolso dos EUA. Na verdade, isto está até induzindo a Suécia e a Finlândia a entrar na OTAN – que é o pior resultado possível do ponto de vista russo, afora a criminalidade da invasão, e as sérias perdas que a Rússia está sofrendo por causa disso.

Então, criminalidade e estupidez da parte do Kremlin, uma severa provocação da parte dos EUA. Este é o pano de fundo que levou a isso. Podemos tentar terminar este horror? Ou deveríamos tentar perpetuá-lo? Estas são as opções.

Só existe uma maneira de dar um fim a isto. É a diplomacia. Agora, por definição, diplomacia significa que ambos os lados a aceitam. Eles não gostam disso, mas a aceitam como a opção menos ruim. Isto ofereceria à Putin algum tipo de escotilha de escape. Esta é uma possibilidade. A outra é simplesmente arrastar isso e ver o quanto todos sofrerão, quantos ucranianos morrerão, quanto a Rússia sofrerá, quantos milhões de pessoas morrerão de fome na Ásia e na África, e quanto seguiremos aquecendo o meio-ambiente até o ponto no qual não haverá possibilidade alguma de se ter uma vida humana vivível. Estas são as opções. Por quase 100% de unanimidade, os Estados Unidos e a Europa querem escolher a opção não-diplomática. Está explícito. Temos que seguir adiante para causar dano à Rússia.

Você pode ler colunas no The New York Times, no Financial Times de Londres, por toda a Europa. Um refrão comum é: temos que ter certeza de que a Rússia sofra. Não importa o ocorra com a Ucrânia ou qualquer outro [país]. Obviamente, esta aposta presume que, se Putin for empurrado até o limite, sem ter uma saída. Ser forçado a admitir a derrota, ele aceitará isso e não usará as armas que tem para devastar a Ucrânia.

Há muitas coisas que a Rússia não fez. Os analistas ocidentais estão assaz surpresos com isso. A saber, eles [os russos] não atacaram as rotas de suprimentos [da OTAN] na Polônia que estão despejando armas dentro da Ucrânia. Eles certamente poderiam fazer isso. Logo, isso os colocaria em uma confrontação direta com a OTAN – quer dizer, com os EUA. Para onde isso iria daquele ponto, você pode adivinhar. Qualquer um que tenha visto jogos de guerra sabe para onde isto irá – para cima, na escalada de ascensão em direção à guerra nuclear terminal.  

Então, estes são os jogos que estamos jogando com as vidas dos ucranianos, dos asiáticos, dos africanos e o futuro da civilização, a fim de enfraquecer a Rússia, para termos certeza de que eles sofram o suficiente. Bem, se você quer jogar este jogo, seja honesto sobre isso. Não existe uma base moral para tanto. Na verdade, isso é moralmente horrendo. E as pessoas que estão na soberba de que estamos defendendo princípios são imbecis – quando você pensa sobre o que está envolvido.

2-Barsamian: Nas mídias e dentre a classe política nos EUA, e provavelmente na Europa, há muito ultraje moral sobre o barbarismo russo, os crimes de guerra e as atrocidades. Não há dúvida que estes estão ocorrendo, como ocorre em todas as guerras. Você não pensa que ultraje moral é um pouco de pensamento seletivo?

Chomsky: O ultraje moral está no lugar certo. Deve haver ultraje moral. Mas se você for ao Sul Global, eles não conseguem acreditar no que estão vendo. Obviamente, eles condenam a guerra – este é um deplorável crime de agressão. E então, eles olham para o Ocidente e dizem: Sobre o que vocês estão falando? Isso é o que vocês fazem a nós o tempo todo.É espantoso ver a diferença nos comentários. Então, você lê o New York Times e o grande pensador deles, Thomas Friedman. Há algumas semanas, ele escreveu uma coluna na qual ele simplesmente jogou as mãos para o alto em desespero. Ele disse: O que podemos fazer? Como podemos viver num mundo que tem um criminoso de guerra? Nós nunca mais vivenciamos isto desde Hitler. Há um criminoso de guerra na Rússia. Não temos ideia de como agir. Jamais imaginamos a ideia de que pudesse haver um criminoso de guerra em qualquer lugar.Quando as pessoas do Sul Global ouvem isto, elas não sabem se devem rachar de riso ou do ridículo. Nós temos criminosos de guerra andando por todos os lados em Washington. Na verdade, nós sabemos como lidar com os nossos criminosos de guerra. Na verdade, isso ocorreu no vigésimo aniversário da invasão do Afeganistão. Lembre-se que aquela foi uma invasão totalmente não-provocada e que teve uma forte oposição da opinião pública mundial. Numa entrevista à seção de estilo do Washington Post, o perpetrador [da invasão], George W. Bush, um grande criminoso de guerra que depois seguiu adiante, invadindo o Iraque uma entrevista, como eles [o jornal] a descreveram, com um amável vovô pateta que estava brincando com os seus netos, fazendo piadas, exibindo os retratos que ele havia pintado das pessoas famosos com quem ele tinha se encontrado. Simplesmente um belo e amigável ambiente.

Então, nós sabemos como lidar com criminosos de guerra. Thomas Friedman estava errado. Nós lidamos muito bem com eles.

Ou pegue aquele que provavelmente é o maior criminoso de guerra do período moderno, Henry Kissinger. Nós não o tratamos de maneira polida, mas com grande admiração. Ao final das contas, este é o homem que transmitiu a ordem à Força Aérea [dos EUA], dizendo que deveria haver um bombardeio massivo do Camboja – “qualquer coisa que voe sobre qualquer coisa que se mova” – foi a frase dele. Eu não conheço um exemplo comparável nos registros arquivados de uma chamada para o genocídio de massa. Mas Taylor Owen e Ben Kiernan, historiadores sérios sobre o Camboja, o descreveram. E depois está o nosso papel na derrubada do governo de Salvador Allende no Chile e na instituição de uma ditadura cruel lá, e por aí adiante. Então, nós sabemos, sim, como lidar com os nossos criminosos de guerra.

Mesmo assim, Thomas Friedman não consegue imaginar que haja alguma coisa como na Ucrânia. Sequer houve qualquer comentário sobre o que ele escreveu, o que quer dizer que este foi considerado como bastante razoável. Dificilmente se pode usar aqui a palavra ‘seletividade’. Isso é além de espantoso. Então, sim, o ultraje moral está perfeitamente no lugar certo. É bom que os estadunidenses finalmente estão começando a demonstrar algum ultraje sobre importantes crimes de guerra cometidos por outros.

3-Barsamian: Eu tenho um pequeno quebra-cabeças para você. Tem duas partes. As forças militares russas são ineptas e incompetentes. Os seus soldados têm uma moral muito baixa e são comandados de uma maneira muito pobre. A sua economia [da Rússia] se nivela com a da Itália e da Espanha. A outra parte [do quebra-cabeças] é que a Rússia é um colosso militar que ameaça nos [os EUA] sobrepujar. Então, nós precisamos de mais armamentos. Vamos expandir a OTAN. Como você reconcilia estes dois pensamentos contraditórios?

Chomsky: Estes dois pensamentos são o padrão no Ocidente inteiro. Eu recentemente dei uma entrevista na Suécia sobre os planos deles de entrarem na OTAN. Eu assinalei que os líderes suecos têm duas ideias contraditórias, as duas que você mencionou. Uma se regozija com o fato de que a Rússia provou ser um tigre de papel que não consegue conquistar cidades que estão a poucos quilômetros da sua fronteira, defendidas na sua maior parte por um exército de cidadãos. Então, eles [os russos] são completamente incompetentes do ponto de vista militar. O outro pensamento é: eles estão prontos para conquistar o Ocidente e nos destruir.George Orwell tinha um nome para isso. Ele chamou isso de ‘doublethink’ [pensamento duplo] – a capacidade de ter duas ideias contraditórias na sua mente e de acreditar em ambas. Orwell pensou, erroneamente, que isso fosse algo que só poderia existir no estado ultra-totalitário o qual ele estava satirizando no seu livro 1984. Ele estava errado. Você pode ter isso nas sociedades democráticas livres. Estamos vendo um exemplo dramático disso agora mesmo. Diga-se de passagem, não é a primeira vez que isto ocorre.Este ‘doublethink’ é, por exemplo, característico do pensamento sobre a Guerra Fria. Volte ao mais importante documento da Guerra Fria daqueles dias, o NSC-68 [National Security Council paper n. 68] de 1950. Verifique-o com cuidado; ele mostra que a Europa sozinha, separada dos EUA, estava militarmente em pé de igualdade com a Rússia. Porém mesmo assim, obviamente, nós ainda tínhamos que ter um enorme programa de rearmamento para nos contrapormos aos planos de conquista do mundo do Kremlin.

Este é um documento e foi uma abordagem consciente. Um dos autores do mesmo, Don Acheson, declarou mais tarde que é necessário ser “mais claro que a verdade” – uma frase dele – para ameaçar o pensamento de massa do governo. Nós queremos fazer passar este enorme orçamento militar, então devemos ser “mais claros que a verdade” ao inventarmos um estado escravo que está por conquistar o mundo. Este pensamento perpassa direto pela Guerra Fria. Eu poderia lhe dar muitos outros exemplos, mas nós o estamos vendo novamente agora de maneira bastante dramática. E a maneira como você o colocou é precisamente correta: estas duas ideias estão consumindo o Ocidente.

4-Barsamian: Também é interessante que o diplomata George Kennan previu o perigo da OTAN mover as suas fronteiras para o leste, num artigo de opinião muito presciente que ele publicou no New York Times em 1997.

Chomsky: Kennan também se opôs ao NSC-68. Na verdade, ele era [então] o diretor da equipe de planejamento de políticas do Departamento de Estado [dos EUA]. Ele foi expulso e substituído por Paul Nitze. Ele [Kennan] foi considerado frouxo demais para um mundo tão duro. Ele era um falcão [politicamente], radicalmente anticomunista, bastante brutal no que concerne às posições dos EUA, porém ele se deu conta que uma confrontação militar com a Rússia não fazia sentido slgum.

Ele [Kennan] pensou que a Rússia, em última instância, colapsaria a partir das suas contradições internas – o que acabou provando-se correto. Mas ele era considerado como uma pomba [politicamente] o tempo todo. Em 1952, ele foi à favor da unificação da Alemanha fora da aliança militar da OTAN. Na verdade, esta era também a proposta do governante soviético Joseph Stalin. Kennan foi embaixador dos EUA na União Soviética e um especialista sobre a Rússia. 

Iniciativa de Stalin. Proposta de Kennan. Alguns países europeus o apoiavam. Isto teria terminado com a Guerra Fria. Teria resultado numa Alemanha neutralizada, não-militarizada e sem fazer parte de qualquer bloco militar. Isto foi quase totalmente ignorado em Washington.

Havia um especialista respeitado em política externa, James Warburg, que escreveu um livro sobre isto. Vale a pena lê-lo. Chama-se ‘Germany: Key to Peace‘ [‘Alemanha: A Chave para a Paz’]. Neste livro, ele insiste que esta ideia seja tratada seriamente. Ele foi desconsiderado, ignorado, ridicularizado. Eu o mencionei um par de vezes e também eu fui ridicularizado como sendo um lunático. Como se poderia crer em Stalin? Bem, os arquivos foram revelados [lei de informação pública dos EUA, 50 anos após os fatos]. Resulta que aparentemente ele estava falando seriamente. Agora você lê os mais importantes historiadores da Guerra Fria, gente como Melvin Laffler, e eles reconhecem que havia uma oportunidade real de chegar a um acordo de paz naquela época, o qual foi desconsiderado a favor da militarização, de uma enorme expansão do orçamento militar.

Agora, vamos ao governo Kennedy. Quando John Kennedy assumiu a presidência, Nikita Khruschev, que comandava a Rússia naquela época, fez uma oferta muito importante de executar reduções mútuas em larga escala das armas militares ofensivas – o que teria significado um forte relaxamento das tensões. Naquela época, os EUA estavam muito à frente do ponto de vista militar. Khrushchev queria avançar o desenvolvimento econômico na Rússia e entendeu que isso era impossível no contexto de uma confrontação militar com um adversário muito mais rico. Então, primeiro ele fez esta oferta ao presidente Dwight Eisenhower, o qual não lhe deu atenção. Depois, esta proposta foi oferecida à Kennedy e o seu governo respondeu com o maior crescimento de forças militares em tempos de paz da história – mesmo que eles soubessem que os EUA já estavam muito à frente.

Os EUA forjaram uma “lacuna de mísseis”. A Rússia estava prestes a nos sobrepujar com a sua vantagem em mísseis. Bem, quando a lacuna de mísseis foi exposta, esta revelou-se a favor dos EUA. A Rússia tinha, talvez, quatro mísseis expostos em uma base aérea em algum lugar.

Se pode ir mais adiante assim. A segurança da população [dos EUA] simplesmente não é uma preocupação de quem decide as políticas. Segurança para os privilegiados, os ricos, o setor corporativo, os fabricantes de armas – sim, porém não o resto de nós. Este ‘doublethink’ é constante, algumas vezes é consciente, outras vezes não. É exatamente o que Orwell descreveu: um hiper-totalitarismo numa sociedade livre.

5-Barsamian: Num artigo no [website] Truthout, você cita o discurso “Cruz de Ferro” de Eisenhower em 1953. O que você encontrou de interessante nele?

Chomsky: Você deveria lê-lo e ver por que é interessante. Foi o melhor discurso dele de todos os tempos. Isto era em 1953, quando ele apenas assumia a presidência [dos EUA]. Basicamente, o que ele assinalou foi que a militarização era um tremendo ataque à nossa sociedade. Ele – ou seja quem for que escreveu aquele discurso – colocou as coisas de maneira muito eloquente. Um avião a jato significa muitas escolas e hospitais a menos. Cada vez que aumentamos o nosso [dos EUA] orçamento militar, estamos atacando a nós mesmos.

Ele descreveu isto com alguns detalhes, pedindo uma redução do orçamento militar. Ele mesmo tinha um recorde muito horrível, mas neste respeito ele estava certo. E aquelas palavras deveriam estar gravadas na memória de todos. Na verdade, recentemente, Biden propôs um enorme orçamento militar. Mas o Congresso [dos EUA] aumentou mesmo contra o seu desejo – o que representa um ataque maior à nossa sociedade, exatamente como Eisenhower explicou há tantos anos.

A desculpa: a alegação de que temos [os EUA] que nos defender deste tigre de papel, que é tão incompetente e não consegue mover-se uns poucos quilômetros da sua fronteira sem entrar em colapso. Então, com um orçamento militar monstruoso, nós causamos sérios danos a nós mesmos e colocamos o mundo em perigo, desperdiçando recursos enormes que serão necessários se formos lidar com as severas crises existenciais que enfrentamos. Neste ínterim, estamos despejando fundos dos contribuintes na vasta expansão tanto da produção de combustíveis fósseis quanto dos gastos militares. Há pessoas que estão felizes com isso. Vá aos escritórios executivos da Lockheed Martín, da ExxonMobil – eles estão em êxtase. Para eles esta é uma bonança. Eles até são creditados por isso. Agora, eles estão sendo louvados por salvar a civilização ao destruir a possibilidade de vida na Terra. Esqueça o Sul Global. Se você imaginar alguns extraterrestres, se estes existissem, eles pensariam que nós estamos todos totalmente loucos. E eles teriam razão.

*David Barsamian é o fundador e apresentador do programa de rádio ‘Alternative Radio’ (Rádio Alternativa) e publicou livros junto com Noam Chomsky, Arundhati Roy, Edward Said e Howard Zinn – entre outros. O seu mais recente livro com Noam Chomsky é ‘Chronicles of Dissent’ (Haymarket Books, 2021) [Crônicas de Dissenção]. ‘Alternative Radio’, fundado em 1986, é programa semanal de uma hora sobre assuntos de interesse público, oferecido gratuitamente para todas as estações de rádio públicas nos Estados Unidos, Canadá e Europa.

*Noam Chomsky é o professor emérito do Departamento de Linguística e Filosofia do MIT (Massachusetts Institute of Technology e professor laureado de linguística e titular da cadeira de Agnese Nelms Haury no programa de justiça ambiental e social da Universidade do Arizona. Ele é autor de inúmeros livros best-sellers de política, os quais foram traduzidos em muitas línguas, incluindo o seu mais recentes – ‘Optimism Over Despair’ [Otimismo sobre o Desespero], ‘The Precipice’ [o Precipício], com Marv Waterstone, e ‘Consequences of Capitalism’ [As Consequências do Capitalismo’].

Foto reproduzida da Internet

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