Artigo

Não à escolha de Sofia

por Ricardo Lagreca

Aceitar ou entender o final de uma doença terminal é uma coisa. Aceitar como estado terminal, sem existir a doença no seu estágio final, é outra coisa. É isto que está se propondo em diversas ocasiões de superpopulação das unidades de tratamentos intensivos (UTI), durante esta pandemia.

Apesar de ser uma decisão muito complexa parece que está se diminuindo o  seu peso ou a sua importância, quando vários pronunciamentos de órgãos  importantes , inclusive, com respaldo jurídico, idealizam  protocolos com escalas quantitativas para estabelecerem parâmetros de quem vai ter atendimento adequado com internação na UTI, ou não.

Mesmo nesta crise na saúde que o mundo atravessa, não dá para aceitarmos como sendo justificável o que vem se pensando. Primeiro, o princípio básico de como evitar deveria ser muito claro para todos, isto é, a diminuição dos casos ou da demanda. Para isto, já existe alguma experiência adquirida, através do mundo afora,  no sentido da decisão do isolamento horizontal.  Segundo que se mesmo assim,  com todos os cuidados tomados a fim de não se ter  superlotação das UTIs, exista um colapso do sistema, algo mais deve ser realizado na tentativa de evitar que a pessoa venha a morrer desassistida. 

Nestas circunstâncias, a UTI ideal pode ser substituída por leitos de enfermarias que possam ser adaptados para manutenção da assistência ventilatória. Tempos atrás, na epidemia da poliomielite,  quando não existia UTI, os pacientes com falência respiratória eram colocados em enfermarias respirando com aparelhos chamados de pulmões de aço. Portanto,  não seria uma inovação, mas uma medida heróica .

Dois aspectos são essenciais para isto. Os aparelhos de ventilação pulmonar e profissionais de  saúde treinados para este fim, devem existir. Em um momento desesperador estas dificuldades de aquisição,  que se diga de passagem são trabalhosas, tornam-se,  contudo,  menores e  compatíveis com soluções. É necessário que se entenda, que todas elas são incomparáveis com a decisão de escolher quem terá a sentença de morte dada ou não.

Muito tempo se passou para que o entendimento da morte biológica fosse aceita, apenas a partir de quando exista a morte encefálica e não quando o  coração deixa de bater. Este princípio é o que norteia a doação dos corações e outros órgãos para os transplantes. Pois bem: como podemos achar então,  que apesar da tristeza, é aceitável que se deixe uma pessoa, consciente e querendo viver,  morrer porque ela atingiu um “score” numérico compatível com a morte? Pergunto-me, a que ponto chegamos. Será que alguém pensou que o mundo moderno seria caracterizado por tamanha crueldade? Talvez os vírus tenham imaginado isto.

*Ricardo Lagreca é médico cardiologista, professor da UFRN e ex-secretário de Saúde do Estado do Rio Grande do Norte

Foto reproduzida da Internet

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